Revista Leituras da História traz interessantes dados sobre Euclides
Antropóloga aborda aspectos de interesse para melhor compreender a visão do escritor em Os Sertões.
por Lilian de Luca Torres*
Neste ano completa-se o centenário de morte de Euclides da Cunha (1866-1909), um dos mais importantes autores nacionais. Euclides viveu e produziu em um momento em que as ideias deterministas ainda manifestavam seu vigor como base explicativa para a realidade brasileira. No livro que o consagrou como um dos maiores intérpretes do Brasil, Os sertões (1902), pode ser encontrado, para além da análise da Guerra de Canudos, um estudo sobre a formação do povo brasileiro e a diversidade geográfico-climática do País. A obra, dividida em "A Terra", "O Homem" e "A Luta", foi organizada de acordo com a hierarquia das ciências aceita na época: partindo da noção de que os fundamentos de toda realidade repousam sobre a "matéria", o relato inicial baseia-se nas ciências inorgânicas (Geografia, Geologia), passando depois para as orgânicas (Biologia) e, por fim, para as ciências sociais (História, Sociologia). Obedecendo esta sequência, Euclides começa pelo estudo da infraestrutura geológica, das variações do clima e do sistema fluvial, para estender-se à flora e, por último, tratar do homem e das injunções históricas.
Por meio dos vetores "meio", "raça" e "história", Euclides irá interpretar os conflitos entre o que considerava a área "civilizada", ou seja, o litoral, e o interior do País, resguardado por um isolamento geográfico e histórico que o teria mantido vinculado ao passado. Segundo Euclides, a civilização avançaria sobre os sertões, impelida pela implacável "força motriz da História", as raças fortes esmagando as fracas (Cunha, 2003, p. 9). Percebe-se, em sua análise, a confluência de explicações históricas e raciais, sobrevivendo os mais aptos em todos os terrenos, em uma clara alusão ao darwinismo social.
Um repórter na guerra
Enviado ao cenário da guerra de Canudos (que durou de novembro de 1896 a outubro de 1897) como correspondente do jornal O Estado de São Paulo, Euclides da Cunha, por ser militar e, ademais, comungar com a visão oficial que tratava os sertanejos como revoltosos antirrepublicanos, silenciou sobre as atrocidades do massacre. Revê esta posição durante os cinco anos que leva escrevendo Os sertões. Reconhece um elemento de messianismo na reação dos sertanejos e condena o exército pelos excessos cometidos.
Euclides esforça-se para compreender como o sertanejo, um mestiço, teoricamente portador de desequilíbrios típicos do cruzamento de raças (um "degenerado", segundo as teorias deterministas), resistiu a tantas investidas do exército republicano (quatro batalhas), só sendo derrotado diante do poderio das armas de fogo empregadas pela última expedição. Os combatentes de Canudos pareciam rebelar-se até mesmo como objetos de estudo, para contradizer, em relação ao pensamento de Euclides, as teses do determinismo racial.
A foto mostra os sobreviventes da Guerra de Canudos. Em sua obra, Euclides trata os sertanejos - personagens ativos durante a guerra - como "a rocha viva da nação", um povo que tinha esperança de exercer um papel importante no futuro do Brasil |
Ao longo do livro, Euclides alterna a visão do sertanejo como uma sub-raça "instável", "efêmera", "retardatária" e "próxima da extinção" para "a rocha viva da nação". Se o sertanejo corria o risco de desaparecer diante da competição com os imigrantes estrangeiros, era, de maneira contraditória, "antes de tudo um forte". Neto de bandeirante paulista (Cunha, 2003, p. 104), trazendo em si a bravura do índio e a autonomia do branco português, quase sem mescla de sangue africano (p. 105), vencendo o meio inóspito marcado pela seca e pela caatinga, e, principalmente, sendo aquele que teve tempo de fortalecer-se fisicamente enquanto aguardava o desenvolvimento moral e civilizacional posterior da região (p. 117), o sertanejo era "retrógrado", mas não "degenerado" (p. 117). Euclides representa o sertanejo como estando em "compasso de espera", preparando-se para exercer um papel importante no futuro da nação.
Por outro lado, os soldados que lutaram em Canudos, em grande proporção mulatos vindos principalmente do Rio de Janeiro e da Bahia, que, ao final da guerra, degolaram barbaramente todos os prisioneiros, mesmo vivendo em contato com a "civilização", na opinião de Euclides não seriam seus legítimos representantes. Ao contrário, assemelhavam-se a seres incapazes de fazer frente à complexidade da vida urbana em termos de suas exigências intelectuais e morais. Quem não se lembra da famosa frase do livro Os sertões, em que Euclides refere-se aos mulatos apontando "o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral"? À fraqueza física somava uma "doença dos nervos": a neurastenia.
Sertanejos e mulatos
Euclides da Cunha estudou na Escola Politécnica e foi aluno de Benjamin Constant na Escola Militar da Praia Vermelha. Contudo, era infeliz em suas atividades militares e partiu para o campo da literatura |
No contraste entre sertanejos e mulatos, embora ambos fossem mestiços, Euclides elogia os primeiros e desqualifica os segundos. O fator racial considerado "inferior" do sertanejo, o índio, não era de todo desprestigiado por Euclides, que acreditava estar diante de uma raça autóctone - o homo americanus - surgida, portanto, na América, de forma desvinculada do Velho Mundo, com um desenvolvimento autônomo. Dono de coragem e resistência física, o índio teria vencido o meio e criado um modo de vida vigoroso. Já o fator racial visto como "inferior" do mulato, o negro, era, para Euclides, irrecuperável: era o homo afer, "filho das paragens adustas e bárbaras, onde a seleção natural (...) se faz pelo uso intensivo da ferocidade e da força" (Cunha, 2003, p. 73).
Euclides foi um homem insatisfeito em relação às suas atividades profissionais. Militar e engenheiro de formação, sempre aspirou ser um escritor reconhecido. Depois da publicação de Os sertões, tornou-se membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e foi eleito, também, para a Academia Brasileira de Letras. Propôs "uma guerra dos cem anos" para combater a seca no nordeste, com a construção de açudes, poços artesianos, estradas de ferro e o desvio do Rio São Francisco para irrigar as áreas mais atingidas pela estiagem. Tornou público seu interesse pela Amazônia ao publicar, em 1904, no jornal O Estado de São Paulo, artigos sobre os conflitos entre Peru, Bolívia e Brasil, que via como uma disputa pelo acesso ao oceano Atlântico. A morte prematura, aos 43 anos, por assassinato, aproximou sua história pessoal da tragédia grega que tanto admirou em vida.
*LILIAN DE LUCCA TORRES é mestre em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo e atualmente leciona na Faculdade de Comunicação & Marketing da FAAP. É pesquisadora do Núcleo de Antropologia Urbana da USP e editora da Revista Ponto.Urbe do mesmo núcleo.
in: http://portalcienciaevida.uol.
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