quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Entre a genialidade e a tragédia, Euclides da Cunha foi um homem de extremos

por CECILIA PRADA*

Manhã de domingo chuvoso, no Rio de Janeiro – 15 de agosto de 1909. Um homem de baixa estatura, bigode teso e insolente, olhar fixo de brilho tuberculoso, invade uma casa no bairro da Piedade onde se abrigam sua mulher, com dois de seus filhos, e o amante dela. Empunha um revólver e vai disposto a jogar a cartada final de uma tragédia familiar que vivia há quatro anos – matar ou morrer são as únicas alternativas que vislumbra para sua intolerável situação de desonra e para a dissolução de sua família. No tiroteio que se segue, o amante sai ferido, um seu irmão também é atingido, ficando inutilizado para a vida, mas quem acaba morto é o próprio marido vingador.

Com os delineamentos de uma vulgar tragédia de folhetim, findava assim, aos 43 anos, e nada gloriosamente, a vida de Euclides da Cunha, um dos maiores escritores que este país já teve, autor de uma obra imortal, Os Sertões, um clássico até hoje indispensável para a formação de um pensamento sobre o Brasil.

Um fato policial sobre o qual há um século existe acirrado debate, eivado nas décadas imediatamente posteriores ao crime de uma parcialidade óbvia – o promotor procurara transformar o violento agressor Euclides em vítima em uma questão de honra e pedia, em nome dos brios do exército, a condenação do tenente Dilermando de Assis, o amante de 21 anos de Anna Emília Ribeiro, esposa do escritor. Enquanto isso, a imprensa e a intelectualidade cerravam fileiras em torno do "semideus abatido a tiros", assumindo partido contra o jovem militar que agira em defesa própria, e ao qual sempre se referiam como "assassino desprezível e asqueroso", "fera", "covarde", "cínico". Personalidades como o barão do Rio Branco, Afrânio Peixoto, Coelho Neto, dentre outros, escreveram violentos artigos contra Dilermando, ignorando qualquer noção de justiça. Lamentando, como dizia o escritor Coelho Neto, "o grande Euclides, caído em defesa de seu nome puro, morto covardemente, agarrado à honra como os mártires antigos morriam abraçados à cruz".

Euclides fora sempre conhecido por seu temperamento violento e impulsivo, e era de trato muito difícil e pouquíssimo ou nada afetivo para com a própria esposa e os filhos. Foi descrito como "homenzinho seco e mal-enjorcado", "de olhos exorbitados e duros", "corpo teso como em continência militar permanente". E não há dúvida alguma de que estava completamente descontrolado quando invadiu a casa do tenente, com o propósito de assassinar a esposa e o amante. Como Anna se escondeu, com os filhos, procurou Dilermando em seu quarto e alvejou-o com quatro tiros, cujas balas o jovem conservaria até o final da vida cravadas no corpo. Quando o irmão de Dilermando, um jovem guarda-marinha chamado Dinorah que ali vivia também, e que era um atleta reputado, tentou contê-lo, Euclides disparou um tiro em sua nuca, deixando-o paraplégico pelo resto da vida e motivando seu suicídio, 11 anos mais tarde. Mesmo gravemente ferido, Dilermando conseguiu alvejar e matar seu agressor.

Essa tragédia espantosa, sobre a qual já muito se escreveu – houve até uma minissérie da TV Globo baseada no livro Anna de Assis – História de um Trágico Amor, de Judith de Assis, filha de Dilermando e Anna, em depoimento a Jefferson de Andrade –, é revivida e analisada mais profundamente, e de um ponto de vista feminino, em dois livros recentes: Matar ou Morrer, da jurista Luiza Nagib Eluf, e Crônica de uma Tragédia Inesquecível, da professora Walnice Nogueira Galvão. No primeiro desses livros encontramos a transcrição do laudo necroscópico de Euclides, no qual se comprova que seu cérebro "privilegiado" – de inconteste genialidade e que nos transmitiu legado cultural tão importante – fisicamente era marcado pela sífilis congênita, presente sob a forma de uma tuberculose meningítica que seria, certamente, a responsável por seu comportamento desequilibrado.

A principal vítima do trio parece ter sido Anna Emília, vilipendiada e expulsa de todo convívio social como "degenerada", "prostituta", "de comportamento antinatural" – enfim galardoada com todos os adjetivos que a sociedade patriarcal e hipócrita de seu tempo pôde encontrar. Não foi acolhida ou perdoada por sua própria família, nem sequer pela mãe – seus parentes estavam todos preocupados em "não manchar a reputação" de seu pai, o major Sólon Ribeiro, que fora um herói da Guerra do Paraguai. Além dos maus-tratos que sofria por parte do marido, Anna ficava praticamente abandonada durante os longos períodos que Euclides passava fora de casa, viajando e trabalhando. Segundo seu depoimento, Euclides nunca lhe dera "sinal algum de afeto ou carinho e só pensava em seus livros". Anna conheceu Dilermando em 1905, quando morava sozinha com os filhos em uma pensão do Rio de Janeiro – Euclides partira em agosto de 1904 para a região amazônica, de onde só voltaria no início de 1906. Pelo que se diz, não costumava nem mandar notícias à mulher. Anna tinha 33 anos e apaixonou-se loucamente pelo belo, louro e alto cadete de 17 anos, que correspondeu plenamente a seu sentimento. Estava grávida de três meses e morando com o amante quando o marido regressou, mas pelo visto tentaram recompor a vida familiar, pois Euclides reconheceu como filho o menino Marcos, nascido em julho de 1906, mas que viveu apenas sete dias. No ano seguinte, Anna deu à luz Luiz, também filho de Dilermando. No dia 14 de agosto de 1909, ela resolveu abandonar de vez o marido, e como não foi acolhida pela própria família, buscou refúgio na casa do tenente, na qual, no dia seguinte, ocorreria a tragédia.

Defendido pelo brilhante advogado Evaristo de Moraes, Dilermando foi absolvido – contra a opinião pública – e em 1911, assim que saiu da cadeia, casou-se com Anna. Uma nova tragédia, porém, estava por vir. Em 1916 Euclides da Cunha Filho, um jovem aspirante da Marinha disposto a vingar a morte do pai, alvejou publicamente o padrasto pelas costas, em um cartório do Rio de Janeiro. Mais uma vez a sorte favoreceria Dilermando, que não por nada ganhara prêmios de tiro na academia militar. Embora ferido ele se voltou rapidamente, sacando o revólver, e matou com um tiro certeiro seu agressor. Agira mais uma vez em legítima defesa, e foi novamente absolvido.

Temperamento e arte

Descontado o aspecto patológico que parece realmente ter caracterizado o comportamento de Euclides em seus últimos anos, sua impulsividade, sua capacidade de viver, pelo menos cerebralmente, de uma maneira inteiramente "apaixonada" tornaram-no defensor inato de grandes causas e portador de uma permanente "sede de justiça". Ele próprio se definia como "o último dos românticos, não já do Brasil apenas, mas do mundo todo, nestes tempos utilitários". Esculpiu para si um personagem de herói, inconformado, que seguiria "uma linha reta" de princípios éticos e um ideal revolucionário de progresso social. Republicano ferrenho, quando eclodiu a rebelião de Canudos viu nela, à distância, e seguindo a interpretação da imprensa da época, um foco de resistência ao progresso, uma tentativa de restauração monárquica. E pregou violentamente (como tudo o que fazia) contra ela. Dois artigos seus, publicados em 1897 em "O Estado de S. Paulo", intitulados "A Nossa Vendeia", equiparavam os jagunços de Antônio Conselheiro aos reacionários chouans que haviam se armado contra a Revolução Francesa.

No entanto, enviado pelo jornal como repórter para a Bahia em julho do mesmo ano, bastaram-lhe os 24 dias que passou em Salvador, entrevistando os soldados que voltavam de Canudos, para perceber o equívoco em que se metera. Seguindo para o local da luta, ao presenciar a carnificina cometida pelo exército – com degolas, destripamentos, atos de sadismo cometidos até contra mulheres e crianças (inclusive com venda delas) –, seu espírito justo foi tomado de profunda repulsa e abraçou a causa dos vencidos, prometendo a si próprio deixar à posteridade o registro do que realmente acontecera no ermo do sertão.

Concentrou toda a sua emotividade na escritura de uma obra-prima que ilustra, mais do que nenhuma outra, o que Zola dizia da arte, que era "a natureza vista através de um temperamento". Nas palavras de Afrânio Peixoto, não se pode ver em Os Sertões uma obra de história, estratégia ou geografia, mas "apenas o livro que conta o efeito do sertão sobre a alma de Euclides da Cunha". A genialidade do escritor consistiu, justamente, em transpor para um plano literário o que, antes de mais nada, foi um processo subjetivo intenso – a expiação de uma culpa, a história de uma tomada de consciência.

Essa intensidade, reprimida ao extremo na vida familiar e cotidiana, aliada à técnica estilística formada solidamente desde a infância e aprimorada no exercício do jornalismo, permite que, cem anos mais tarde, sua obra permaneça mais viva do que nunca. Traduzida para pelo menos dez línguas, com incontáveis edições em português, constitui um verdadeiro acervo documental, temático, que continua a exercer influência sobre escritores de todas as partes do mundo, cineastas, pesquisadores. Basta ver o exemplo de dois romances estrangeiros inspirados diretamente pela obra de Euclides: A Guerra do Fim do Mundo, do peruano Vargas Llosa, e Veredicto em Canudos, do húngaro Sándor Márai.

Polêmico, enigmático, contundente, o livro ilustra como a geração de Euclides andava sedenta, naqueles primórdios da República, de um projeto político e social que pudesse unificar a nacionalidade em formação. Era, ele próprio, um fruto da Escola Militar, em que fora admitido em 1886. A instituição, conhecida na época pela atitude contestadora, estava infiltrada pelas ideias republicanas e pelo positivismo de Augusto Comte. O jovem de 22 anos logo seria conhecido por um episódio de extrema rebeldia – durante a visita à escola do ministro da Guerra, saiu de forma durante a revista, atirou ao chão o sabre e interpelou o ministro sobre a paralisação das promoções no exército. Não foi imediatamente expulso porque não interessava ao governo, fraco e atacado, dar um cunho político ao incidente. Aliás, seu ato poderia lhe valer a condenação à forca, embora seja certo que, se isso tivesse acontecido, o imperador o indultaria. Sob o pretexto de incapacidade física, porém, foi desligado da carreira militar em 1888.

Com o advento da República, e sendo ministro da Guerra Benjamin Constant, seu antigo professor, Euclides pôde matricular-se na Escola Superior de Guerra, como segundo-tenente. Concluiu o curso em 1892, como engenheiro militar, recebendo a patente de primeiro-tenente. Não permaneceu muito tempo no exército, entretanto, pois seu espírito crítico, seu idealismo exacerbado, sua independência de ação não se coadunavam com instituição tão autoritária. Tendo começado a escrever para jornais, criticava também o regime republicano instaurado, que ele dizia ser "da especulação", como estava sendo provado pelo episódio inflacionário do Encilhamento, desencadeado pela política do ministro da Fazenda, Rui Barbosa.

Euclides tomou parte na conspiração que derrubou o marechal Deodoro da Fonseca e defendeu a permanência no poder de Floriano Peixoto. Mas em fevereiro de 1894 já protestava veementemente na "Gazeta de Notícias" contra a execução de prisioneiros políticos, após a Revolta da Armada. Pediu licença do exército em 1895 e reforma no ano seguinte. Transferindo residência para São Paulo, dividiria seu tempo, dali em diante, entre o trabalho como engenheiro, o jornalismo e a literatura.

Imortalidade

As obras-primas literárias que transcendem o momento histórico de sua criação tornando-se "clássicos" de leitura permanente revestem-se sempre de certas características: abordam temas importantes, de interesse universal; apresentam uma forma original, bem estruturada; permitem abordagens e interpretações múltiplas, que, com o correr do tempo, vão sendo acrescidas de novos insights críticos.

Todas essas condições encontram-se presentes em Os Sertões e permitem que a obra permaneça inalteradamente, há cem anos, como uma das pedras angulares para o entendimento do Brasil. Tematicamente, Euclides soube fundir informações científicas, históricas e sociológicas à narrativa literária, de maneira absolutamente original. Embora se ressinta o seu pensamento do cientificismo positivista da época – que o fazia ver na luta de Canudos um embate das sub-raças sertanejas com a raça, mais adiantada, do litoral brasileiro –, sua análise do sertão, e do país, permanece válida, em seus aspectos essenciais. No seu Diário de uma Expedição – anotações escritas em 1897 e somente publicadas em 1939 –, o repórter da Guerra de Canudos anotava: "O que se está destruindo neste momento não é o arraial sinistro de Canudos: é a nossa apatia enervante, a indiferença mórbida pelo futuro (...) a nossa compreensão estreita da pátria, mal esboçada na inconsistência de uma população espalhada em país vasto e mal conhecido".

Nessa ampliação do foco narrativo encontra-se o maior mérito de seu livro. Formalmente, esse recurso é o que dá unidade à obra – "o movimento descendente do narrador", de que fala o crítico Roberto Ventura, que o compara ao recurso usado por Castro Alves em O Navio Negreiro. A divisão de Os Sertões em três partes, "A Terra", "O Homem", "A Luta", seria, em termos atuais, um zoom literário em que o autor, capaz de integrar drama e epopeia em sua prosa, tomava a natureza dos sertões como cenário e nele projetava uma tragédia humana e social. Walnice Nogueira Galvão diz, desse recurso: "O leitor assiste, através da participação no ‘olhar de Deus’, à ‘integração da América’. Por isso o foco narrativo inicial é amplíssimo, tanto do ponto de vista da extensão espacial abrangida quanto do tempo, que parece sem fundo".

Homem de extremos, o escritor soube privilegiar a antítese como recurso estilístico constante, pois via no sertão "um pomar vastíssimo, sem dono", de terras "barbaramente estéreis; maravilhosamente exuberantes", segundo a estação do ano, e onde a própria "natureza compraz-se em um jogo de antíteses". Retratando-a, Euclides na realidade criou um fascinante movimento dialético, polifônico, romântico formalmente, realista tematicamente, capaz de enfeixar inclusive a variedade ideológica já em plena ebulição em sua época – eivada ainda do determinismo de Taine, dos preconceitos raciais, mas já investindo contra as causas mais profundas do atraso em que eram (e são até hoje) mantidas as populações do interior do Brasil.

Inequívoca, nesse sentido, é a sua denúncia do absenteísmo dos proprietários rurais, da condição de verdadeiros servos da gleba dos vaqueiros nordestinos, que define como "herdeiros de velho vício histórico", visto que "graças a um contrato pelo qual percebem certa percentagem dos produtos, ali ficam, anônimos [...] perdidos nos arrastadores e mocambos: e cuidando, a vida inteira, fielmente, dos rebanhos que lhes não pertencem", enquanto "os opulentos sesmeiros da colônia usufruem, parasitariamente, as rendas das suas terras, sem divisas fixas".

Gilberto Freyre e Franklin de Oliveira, entre outros autores, chamam a atenção para os escritos posteriores a Os Sertões, em que Euclides inclina-se nitidamente para uma ideologia socialista. No artigo "Um Velho Problema", de 1907 – que consta do livro Contrastes e Confrontos –, não hesita em dizer: "Realmente, as catástrofes sociais só podem provocá-las as próprias classes dominantes, as tímidas classes conservadoras, opondo-se à marcha das reformas – como a barragem contraposta a uma corrente tranquila pode gerar a inundação".

Mas é o "poeta" que leva a melhor sobre o pensador. A emoção, dirigida pelo gênio, transcende as circunstâncias e vai destruindo – à medida que o realiza – o próprio plano estrutural do livro, no momento em que Euclides, para se usar a definição de Gilberto Freyre, se converte em "engenheiro físico alongado em social e humano", capaz de trocar seus instrumentos de trabalho, a trena, o teodolito, o cálculo, pela pena, na vigília literária de sua cabana de São José do Rio Pardo, cidade do interior paulista em que escreveu Os Sertões ao mesmo tempo em que supervisionava os trabalhos de engenharia da construção de uma ponte. Vem dali, até hoje, o eco de uma voz que se propôs nitidamente revolucionária. Que soube expressar a denúncia do que não era "uma campanha, mas sim uma charqueada", em páginas de tão alto teor literário. Que soube extrair do episódio de Canudos o heroísmo da verdade. Que soube contrariar a própria lei do sertão – o homizio, o local da impunidade onde "ninguém mais pecava" –, identificando-se com as vítimas, e não com os carrascos (governamentais) que o haviam recrutado na qualidade de observador e escritor.

Para os que se sentiam autorizados a matar e torturar, por não temerem – no ermo do sertão – "nem mesmo o juízo remoto do futuro", Euclides assumiu, declaradamente, o papel de voz que expressa esse juízo: "Mas que entre os deslumbramentos do futuro caia, implacável e revolta; sem altitude, porque a deprime o assunto; brutalmente violenta, porque é um grito de protesto; sombria, porque reflete uma nódoa – esta página sem brilhos..."

*Na revista do SESC-SP

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