Professor Leopoldo M. Bernucci
Em setembro a Ateliê Editorial publica “Euclides da Cunha: uma odisseia nos trópicos”, nova biografia do autor de “Os Sertões”. Assinada pelo americano Frederic Amory, professor de literatura e apaixonado desde os anos 60 pela vida e obra de Euclides, a biografia procura atar as pontas e preencher algumas lacunas da breve mas produtiva trajetória do escritor, morto aos 43 anos por Dilermando de Assis, em quem atirara ao confirmar o caso deste com sua mulher, Ana. Para Leopoldo M. Bernucci (ao lado, em foto de divulgação), professor da Universidade da Califórnia (Davis), autor de uma elogiada edição anotada de “Os Sertões” (Ateliê Editorial) e supervisor editorial da nova biografia — seu amigo Amory morreu em fevereiro, pouco depois de fazer a primeira revisão do livro —, o grande mérito do americano foi mostrar Euclides numa “dimensão caleidoscópica”, apresentando ao leitor tanto o sujeito irascível quanto o escritor genial, sem desvincular o homem de sua obra.
Frederic Amory descreve Euclides da Cunha como “um homem impelido por todos os demônios do século XIX — trabalho, obrigação moral, religião (agnosticismo), raça (se não racismo), paixão pela natureza intocada...”. Qual a principal contribuição do trabalho de Amory à (re)construção da figura de Euclides?
É justamente essa mirada em conjunto que ele lança sobre a complexidade individual de Euclides. Em vez de vê-lo em cada compartimento de sua vida, Amory prefere mostrar em dimensão caleidoscópica tudo o que ele foi, como resultado daquilo que ele absorveu na vida, de modo um tanto caótico ou desordenado, resultando num compósito dos mais interessantes. Mas não é só isso. “Euclides da Cunha: uma odisséia nos trópicos” é uma bibiografia verdadeiramente intelectual, na qual Amory nos leva à compreensão do tão incompreendido envolvimento de Euclides com o positivismo e, por primeira vez, à releitura de alguns dos seus ensaios mais desafiantes. Finalmente, Amory procura corrigir algumas falsas impressões e alguns dados historicamente incorretos.
O biógrafo lembra que ao abandonar as ideias positivistas da juventude e abraçar, na maturidade, as teses do evolucionismo, Euclides levou “tintas racistas” para suas análises. Como essa questão deve ser contextualizada? Era um reflexo da ciência da época?
Lamentavelmente Euclides, como outros intelectuais da época, foram fortemente influenciados pelas teorias europeias do evolucionismo, que muitas vezes não se encaixaram na realidade brasileira estudada. Digamos que, por um lado, havia uma necessidade de se utilizar um aparato teórico para dar conta da configuração racial no Brasil e que todas essas teorias eram bastante postiças e forçadas quando aplicadas à nossa realidade. O resultado, como não poderia deixar de ser, foi desastroso. Por outro lado, Euclides intuía que na nossa sociedade a contribuição africana era culturalmente muito rica e abominava a escravidão como prática social desumana e cruel. Basta ler um poema que Euclides escreveu em 1884, “Cenas da escravidão”, do caderno “Ondas”, quando ele tinha apenas 18 anos, em que ele expressa a sua repulsa por essa aberração. Sem falar que sua admiração por Teodoro Sampaio, como pessoa e cientista, demonstra o elevado grau de respeito pelos brasileiros descendentes de africanos.
Amory situa “Os sertões” em primeiro lugar como um tratado sobre raças e sub-raças brasileiras e, em segundo, como uma narrativa de guerra. Em que medida a formação, a leitura e a admiração pela cultura europeia influenciaram a visão de Brasil moldada por Euclides? Quais os benefícios e quais os vícios dessa análise, se existiram?
O principal benefício dessa discussão foi ter Euclides aberto o campo de debate para a compreensão do problema racial no Brasil. Antes dele, o assunto era relativamente tabu e não continha como ele o apresentou uma formulação sistematizada do ponto de vista teórico. A sua visão do Brasil, repito, teria que passar necessariamente pelo crivo das teorias de Ludwig Gumplowicz que Euclides interpretou, como ele o fez com outros teóricos, à sua maneira e não necessariamente como essas teorias foram formuladas pelo autor de “A luta de raças”. Para a compreensão dos fenômenos psicológicos e também biológicos ligados a Antônio Conselheiro e a sua atuação como líder de massas, Euclides haveria de lançar mão também de um conjunto de ideias provindas de César Lombroso, Henry Maudsley e Krafft-Ebing. Era uma medida prática que, ao longo da sua formação intelectual era acatada sem um questionamento mais profundo dos seus pressupostos básicos ou de sua validez. Mas Euclides não foi o único nem no Brasil, nem mesmo na América Latina. Domingo Faustino Sarmiento já havia incorrido em semelhante gesto na Argentina, meio século antes dele, quando escreveu sua obra “Facundo — Civilização e barbárie”.
O Euclides estilista da língua, dono de uma linguagem rebuscada, pouco à vontade com “frases-monstro”, como lembra Amory, atrapalhou de alguma forma, num primeiro momento, o Euclides historiador e jornalista em “Os sertões”? Em sua opinião, qual o grande legado desta obra?
Na verdade quando o biógrafo fala dessas frases-montro, ele se refere somente à sintaxe que Euclides empregou na escritura de um só livro, “Peru versus Bolívia”. Os ensaios ali contidos destoam, significativamente, em tom, estilo e tema dos demais textos euclidianos, e isto porque houve uma necessidade mais técnica e protocolar de escrever dessa maneira. Num primeiro momento, a crítica que se preocupou também da sua linguagem encontrou-a impraticável e hermética. Outros, viram-na como demonstração de virtuosismo estilístico e a aplaudiram. Os modernistas tiveram quase nenhuma disposição para aceitar esse tipo de linguagem e, finalmente, passados quase cem anos, um reexame desse modo de escrever devolveu essa mesma linguagem para o lugar merecido, o dos discursos imperecíveis. O maior legado de “Os Sertões” é a sua grande capacidade de nos fazer pensar o Brasil como nação heterogênea e de áreas culturais e geográficas ainda problemáticas. Na sua heterogeneidade e dimensão continental, o Brasil parece descuidar ou esquecer de certas regiões ou áreas culturais, dando prioridade a algumas e negligenciando outras. Observe, por exemplo, o descuido que ainda experimentamos na area social e educativa dos estados mais pobres, quando estamos vivendo momentos de grandes avanços econômicos e nos vangloriando de um sistema bancário de primeiro mundo. A pergunta fundamental que Euclides faz em “Os Sertões” e que adquire enorme validade até hoje é a seguinte: de que nos serve todo o progresso alcançado até seus (nossos) dias, relativamente visível na faixa litorânea do país, se o interior, e também alguns setores desse litoral, continuam vivendo na Idade da Pedra?
O impacto de “Os sertões” nos meios literário e acadêmico eclipsou o que Euclides fez antes e depois. Existe uma produção mais “injustiçada”, sobre a qual deveria se falar mais? Ou acredita que o fundamental foi dito?
Penso que sua poesia ficou injustamente relegada durante muitos anos. Ele, que escreveu poemas desde a idade dos 17 anos, sem nunca ter deixado de cultivar esse gênero, foi também muito cauteloso com a divulgação de sua coletânea poética. Muitos de seus poemas nunca foram publicados e não porque a qualidade deixasse muito a desejar. Dos 133 poemas que conhecemos dele até hoje, um grande número ficou desconhecido de seus leitores. Esta lacuna acaba de ser preenchida por nós, eu e um colega, o professor Francisco Foot Hardman da Unicamp, que acabamos de preparar um volume, que está no prelo, de suas poesias intitulado “Euclides da Cunha: Poesia reunida” (Editora da Unesp). Tenho certeza que os leitores da poesia euclidiana se surpreenderão com a diversidade, desenvolutra e qualidade poética dessas peças, muitas delas excelentes e que nos ajudam a entender a trajetória intelectual do escritor.
A tragédia familiar provocou muitas lacunas na biografia de Euclides. Por conta do apagamento proposital da figura de Ana de Assis de biografias escritas nos primeiros anos depois da morte do autor, pouco se sabe sobre sua relação afetiva com a mulher, com os filhos, ou sobre o casamento. O que ainda não está totalmente claro para a compreensão do homem como um todo?
Os dados sobre a sua vida familiar são ainda muito incompletos, e quando não o são tendem a ser imprecisos e a estarem marcados por uma forte dose de subjetividade. “Euclides da Cunha: uma odisséia nos trópicos” procura serenizar os ânimos que sempre aparecem exaltados na maioria das biografias do autor ou de sua esposa. Como qualquer casal com filhos e em crise, a vida conjugal de Euclides com Ana de Assis deve ser vista com muita piedade para os dois. A mentalidade machista dos anos que sucederam a morte do escritor, fez dele um mártir e um herói e dela uma megera. Ora, este tipo de interpretação hoje em dia é insustentável e Amory, a meu ver, tenta corrigir essa distorção, mostrando o drama vivido pelos dois indivíduos e também pelos dois filhos mais velhos.
A biografia de Amory lembra todo o tempo o caráter firme, a honestidade e a retidão de Euclides. Porém não esconde o Euclides irascível, que puxou o revólver algumas vezes para tentar resolver problemas como o barulho incômodo de um bar. Essa personalidade cindida ainda merece novos estudos? É relevante para a compreensão de sua obra?
Sim, esse caráter dúbio de Euclides é um dos pontos mais fascinantes da biografia. Aliás no número deste mês da “Revista de História da Biblioteca Nacional” eu publiquei um breve artigo sobre esta questão. Paradoxalmente, na sua tão curta vida de homem voltado para as ciências houve fortes momentos de irracionalismo, que o fizeram emparelhar-se ao grupo dos gênios invariavelmente vulneráveis, homens que com muito esforço edificaram grandes obras, mas que no fim não conseguiram manter a estrutura de seu lar e evitar os golpes de uma tragédia. Euclides, neste particular, foi a regra e não a exceção. Aliás, ele viveu como um bom escritor romântico toda a sua vida, a despeito da orientação científica dada à ela: viveu intensa e apaixonadamente, sempre no limite, morrendo tragicamente muito jovem.
O senhor comenta que o fato de Amory ser estrangeiro pode ter ajudado a construir um retrato equilibrado e profundo de Euclides. Acredita que o modo como o escritor morreu ainda causa desconforto em historiadores e biógrafos hoje, principalmente com herdeiros de Euclides e Dilermando ainda vivos?
Acho que os primeiros biógrafos de Euclides, como Eloy Pontes, Francisco Venâncio Filho, Sylvio Rabello, Olímpio de Souza Andrade, mantiveram uma relação quase emocional com o autor, algo que eu julgo até natural, dado o fato de que alguns deles foram contemporâneos de Euclides e sentiram no fundo d’alma a tragédia de sua morte. Outros, mais modernos, como Roberto Ventura, Luiz Costa Lima, José Carlos Barreto de Santana e Walnice Nogueira Galvão, ofereceram esboços biográficos do autor que, por adotarem uma perpectiva mais distanciada, temporal e emocionalmente falando, emparelham-se às observações de Amory na sua biografia. Portanto, não se trata propriamente de julgar se a melhor biografia pode ser escrita por um brasileiro ou um estrangeiro, mas sim, do fato de que uma biografia de Euclides, quando realizada por um bom escritor estrangeiro, terá melhores chances de oferecer uma visão desapaixonada de sua vida.
O meu papel nesta biografia foi de mero consultor. Acompanhei o trabalho parcimonioso de Amory durante os últimos dez anos e compartilhei com ele outros momentos ligados à obra de Euclides e não necessariamente à sua biografia. Frederic Amory faleceu em fevereiro passado, momentos depois de haver completado a primeira revisão da tradução de sua biografia, do inglês para o português. A minha função a partir desse momento foi prestar um serviço à memória de um amigo querido e acompanhar o trabalho de revisão da tradução e montagem do texto, com o tradutor e a viúva de Amory, a Profa. Elaine Tennant da Universidade da Califórnia em Berkeley. Finalmente, segui a trilha de estudos percorrida pelo biógrafo desde o início da década de 1980, quando ele fazia parte de um grupo de distintos euclidianistas, Rosaura e Augusta Escobar, Oswaldo Galotti, Moisés Gicovate, que frequentavam assiduamente a Semana Euclidiana em S. José do Rio Pardo.
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