Canudos 100 anos após Euclides
Por Marcílio Brandão
Ao partir com a equipe do Canal Futura, do Rio de Janeiro em direção a Canudos, no sertão da Bahia, havia uma hipótese que norteava a pauta de reportagens que faríamos na região: lá encontraríamos um município que herdou uma história triste e sangrenta, mas que hoje se presta como poderosa ferramenta, capaz de alavancar o desenvolvimento sustentável na região a partir de um projeto, devidamente planejado e executado, divulgado na televisão por pesquisadores da Universidade do Estado da Bahia.
Se em 1897 o então Arraial de Canudos foi totalmente destruído e a população quase inteira dizimada pelo bombardeio do Exército brasileiro — restaram poucos idosos, mulheres e crianças — o registro da guerra, feito por Euclides da Cunha no livro “Os Sertões”, marcou na história a força de um povo que, isolado pelas caatingas do Nordeste, resistiu até a morte e não permitiu, aos vencedores, o orgulho da vitória.
Recordemos um pouco: no final do século XIX instalou-se na região dos Canudos o beato Antônio Conselheiro e seus seguidores, gente pobre, habitantes de um Brasil sem horizonte, desconhecido pelas elites litorâneas voltadas para a Europa. Conselheiro, um pregador sebastianista, prometia o paraíso, defendia a Monarquia e a independência dos fieis dos impostos cobrados pela recente República implantada no país. A pregação dele ecoou pelos sertões e atraiu, ao então "Arraial de Canudos", uma população que, em número, apesar das estimativas conflitantes apresentadas por historiadores, em 1897 superava os pouco mais de 15 mil pessoas que hoje vivem no município.
Distante da realidade sertaneja, o comando da incipiente República, ante as notícias que chegavam de um sertão “ameaçador”, precipitou-se e deflagrou uma guerra que durou dois anos. E a história não seria assim conhecida se não houvesse a presença, como testemunha, durante a quarta e última campanha militar, de Euclides da Cunha, destacado pelo jornal “A Província de São Paulo” como seu correspondente de guerra. Publicado cinco anos depois de encerrados os combates, “Os Sertões” logo se constituiu sucesso de crítica e de venda e chocou o país.
Canudos ainda seria outra vez destruída. Em 1970 as águas do açude Cocorobó inundaram as casas quando o lugar retomava o jeito de vila, soerguida que foi pelos herdeiros da tragédia naquele mesmo lugar. Muita gente acredita que o objetivo da construção do açude, uma idéia concebida ainda no Governo Getúlio Vargas e definitivamente concluída no regime militar, foi um só: deixar submersas, escondidas lá no fundo, as ruínas de equívoco histórico injustificável.
Hoje, Canudos vive a sua terceira versão e o açude Cocorobó é mais um elemento que reforça aquela nossa hipótese inicial que tínhamos como guia, antes da viagem à região. É de fato uma cidade que tem história e potencial natural imenso para a aplicação de um modelo de desenvolvimento sustentável. O cenário da guerra, uma caatinga resistente, de solo pedregulhento, bonita e misteriosa, se encontra em bom estado de conservação. A Universidade do Estado da Bahia estuda a região há cerca de 15 anos e já desenvolveu projetos e propostas para a resgatar a história e situar Canudos no caminho do progresso. Os pesquisadores conseguiram implantar dois equipamentos importantes: o Memorial Antônio Conselheiro, um pequeno museu com fotos e objetos do período da guerra encontrados em escavações arqueológicas, e o Parque Estadual de Canudos, a zona onde houve os conflitos toda mapeada. E ainda investigam alternativas para a agricultura e a pesca.
Na agricultura, o município tem como principal produto a banana, a única cultura irrigada no perímetro do Cocorobó. Mas sem orientação técnica os produtores abusam da quantidade de água. Em conseqüência uma boa parte do solo está em processo de salinização. Na pesca, o peixe nativo desapareceu, o camarão também, e os pescadores acusam a introdução do tucunaré na região com a principal causa, além da pesca predatória. Aliás, o açude não cumpre ainda a sua função. Só abastece a área urbana. A zona rural continua a utilizar o carro pipa.
Enquanto o projeto da Universidade não se consolida, na verdade se avança é a passos lentos, a grande maioria da população continua na dependência do bolsa-família com a região a apresentar os mais baixos índices de desenvolvimento humano do estado da Bahia. O desemprego é grande, tanto no campo quanto na cidade, e os jovens sem perspectiva deixam a cidade em busca de oportunidades, como sempre aconteceu na região.
Concluindo: do Rio de Janeiro o nosso olhar à distância sobre Canudos não tinha um foco nítido. Não enxergávamos que nem estrada asfaltada chega ao município. E que Canudos permanece no isolamento. Ter a História na mão não é suficiente. O canudense ainda tem outra luta pela frente.
* Marcílio Brandão é editor executivo do Jornal Futura.
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