O calidoscópio jurídico de Euclides da Cunha (2)
Vimos, no artigo anterior, que Euclides teve formação jurídica na Escola Militar da Praia Vermelha (vale acrescentar: depois, aprendeu Direito Administrativo na Escola Superior de Guerra, onde concluiu o curso de Estado Maior e Engenharia); que seus artigos traziam noções legais; que sua poesia era atravessada pelo jargão do Direito; e que o escritor era portador de um aguçado senso de Justiça, notadamente quando reviu sua posição a respeito da Guerra de Canudos, passando a classificar como crime a chacina perpetrada pelo Exército brasileiro contra os sertanejos rebelados.
Nada disso, porém, transforma o autor de A margem da história em jurista. Da mesma forma, Machado de Assis não foi guindado à posição de “doutor” apenas pela presença de personagens jurídicos em seus contos e romances ou porquê se utilizava da linguagem jurídica em suas criações literárias, inclusive na poesia. De outro lado, seria forçar a barra atribuir a Machado a função de diplomata só porque emitia opiniões sobre política internacional. Como seria demasia chamar de jogador de futebol ou piloto de Fórmula-1 o comentarista esportivo, ou de deputado o cronista político.
Evidentemente, Euclides da Cunha não era jurista porque escrevia crônicas no jornal O Estado de S. Paulo sobre temas jurídicos, como no caso do texto publicado em 29 de março de 1892 “a propósito da brutalidade de um iconoclasta qualquer que, num ímpeto de revolta inconsciente, quebrou a imagem do Cristo no júri da Capital Federal” (tema redivivo, aliás, este da presença de ícones religiosos em repartições públicas...).
Machado de Assis, vale insistir no assunto, era jurista de fato porque atuou como advogado público (mesmo sem essa designação), elaborando anteprojetos de lei e redigindo pareceres jurídicos, como servidor*.
Pois bem. O fato é que Euclides era “doutor”, porque também foi advogado público de fato. Uma faceta que permanece praticamente (ou mesmo totalmente) inédita na biografia do engenheiro, historiador, geógrafo e portador de tantos outros títulos e habilidades, além, claro, de escritor estupendo.
Euclides jurista
Durante seus últimos anos de vida, Euclides da Cunha foi contratado pelo Barão do Rio Branco para assessorá-lo em atividades do Itamaraty.
Assim, em 1904-1905, o já consagrado autor de Os sertões partiu para uma expedição de reconhecimento do Alto Purus, participando de uma arriscadíssima empreitada conjunta Brasil-Peru para descrever e analisar os caracteres geográficos daquele rio amazônico. A viagem gerou o “Relatório da Comissão Mista Brasileiro-Peruana de Reconhecimento do Alto Purus – notas complementares do comissário brasileiro”, escrito por Euclides e publicado pela Imprensa Nacional, em 1906. Viajando em embarcações precárias, que encalhavam diversas vezes; encarando a falta de víveres; enfim, enfrentando condições adversas, o escritor produz um extenso texto, que ficou conhecido como O rio Purus, misto de aventura e ciência, geologia, geografia e história, relatório detalhado sobre parte das hidrovias amazônicas. Não foi ainda aí que Euclides mostraria seus dotes de jurista, o que ocorreria logo em seguida.
Também trabalhando para o Ministério das Relações Exteriores, o engenheiro elabora um riquíssimo trabalho sobre o conflito de fronteiras envolvendo o Peru e a Bolívia. O interesse brasileiro no caso pautava-se pela relação da refrega com o território do Acre, recém-adquirido da Bolívia (em 1903). Publicado pela primeira vez em 1907, no Jornal do Commercio, o relatório, denominado Peru versus Bolívia, é, essencialmente, um parecer jurídico.
É neste trabalho que Euclides, a serviço do Itamaraty, revela sua vocação de advogado público arguto – embora o cargo que ocupava não tivesse essa acepção, como o conhecemos hoje. Bebendo em fontes históricas documentais, demonstrando vasto conhecimento geográfico e destrinchando complexos tratados internacionais e outros documentos legais, opina, com fundada argumentação jurídica, pelo ganho de causa pela Bolívia, na querela arbitrada pela Argentina (na foto, tirada durante viagem à Amazônia, Euclides aparece no centro da fila de trás) .
Algumas passagens do extenso relatório – melhor chamá-lo por seu verdadeiro nome... –, do extenso parecer jurídico, revelam doutor Euclides em plena forma. Vamos a elas:
“(...) o interesse que [o caso] desperta é [sobre] a legitimidade da sua discussão, ao menos durante a litispendência, antes da sentença do juiz soberano e inapelável. Além disto, a este mesmo árbitro não lhe bastará a massa formidável de documentos cartográficos e históricos fornecidos pelos Governos interessados, apequenando-se na tarefa medíocre e exaustiva de contrastar um sem-número de linhas embaralhadas, e datas no geral inexpressivas; ou derivando ao pecaminoso anacronismo de agitar – inteiriços, embaralhados e rígidos – alguns velhos documentos coloniais, diante das exigências mui outras e das fórmulas mais liberais do direito atual entre as nações”.
Quem lida hoje com o direito internacional ou com o direito imobiliário sabe da complexidade das questões geográficas e históricas muitas vezes envolvidas na solução de litígios de terras e fronteiras. Ao juiz, pois, como alerta o nosso percuciente parecerista, no caso em tela, cabe distinguir o direito no emaranhado de mapas e relatórios, tratados e documentos os mais diversos.
É assim que Euclides da Cunha vai construindo seu parecer: interpretando tratados internacionais e normas unilaterais baixadas ora pelo Império espanhol, ora por suas colônias sulamericanas. Tudo embasado em uma articulação multidisciplinar, envolvendo conhecimentos geográficos, históricos e jurídicos. Eis, aliás, um traço distintivo do nosso Euclides: rejeitava uma visão estanque do saber, compartimentado em disciplinas isoladas. Ao contrário, esmerava-se em obter uma compreensão global de seus objetos de estudo e criação artística (também aí, mesclando arte e ciência).
Estudando, amiúde, cartas régias e outras normas coloniais do mesmo jaez, Euclides da Cunha vai, passo a passo, desmontando – preclaro jurista! – a pretensão peruana sobre a área em litígio. Cito um exemplo, entre outros inúmeros:
“Esta carta régia, agitada, imprudentemente, como a prova capital dos direitos do Peru, contraproduz. É desastrosa para a República, que se proclama herdeira do regime condenado e extinto. É a prova preexcelente dos direitos da Bolívia”.
Ou, então:
“A posse peruana nas cabeceiras do Juruá e do Purus, nula, de direito, antes de 1810, não se realizou, de fato, nos anos subsequentes até os Tratados de 1851 e 1867.
Ao final do longo parecer jurídico, conclui:
“Não combatemos as pretensões. Denunciamos um erro.
Não defendemos os direitos da Bolívia.
Defendemos o Direito”.
Pena que a morte precoce de Euclides, com apenas 43 anos de idade, tenha privado seus leitores de outros muitos pareceres jurídicos que poderia ter produzido para a posteridade – sobre a qual, aliás, com jargão jurídico, escreveu: “A posteridade, o supremo júri das gentes, procede em seu julgamento de uma maneira sumária” (O Estado de São Paulo, em 2 de abril de 1892).
O supremo júri das gentes precisa decidir de maneira sumária que Euclides da Cunha é um jurista de mão cheia!
* A esse respeito, recomendo as leituras de Machado de Assis e a Administração Pública Federal, de Paulo Guedes e Elizabeth Hazin, Edições do Senado Federal, volume 68, Brasília, 2006, e também de Doutor Machado – o direito na vida e na obra de Machado de Assis, de Cássio Schubsky e Miguel Matos, Editora Lettera.doc e Migalhas, São Paulo, 2008.
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