terça-feira, 25 de agosto de 2009

Observatório de Euclides

Programa da TV Brasil tem especial sobre Euclides

Observatório da imprensa teve o escritor em foco, com a presença da professora Walnice Nogueira Galvão

Os vídeos na íntegra do programa podem ser vistos aqui.

Em 15 de agosto de 1909, uma notícia comoveu a opinião pública. Em uma troca de tiros com o amante de sua esposa, morria Euclides da Cunha, autor de Os Sertões, considerado por especialistas como o grande épico da literatura brasileira. O crime ocupou as manchetes dos jornais durante semanas e ainda hoje é lembrado como "A tragédia da Piedade", bairro carioca onde ocorreu. O Observatório da Imprensa de terça-feira (11/08), excepcionalmente gravado, homenageou o intelectual que eternizou a Guerra de Canudos, um momento crucial para a imprensa brasileira. Como correspondente de O Estado de S.Paulo, Euclides cobriu a primeira guerra moderna no Brasil, que contou com inovações como o telégrafo, o trem e o jornal.

O jornalista Alberto Dines entrevistou a professora doutora Walnice Nogueira Galvão, autora de 11 livros sobre o escritor; o jornalista e escritor Roberto Pompeu de Toledo, autor de artigos sobre Canudos; o jornalista Daniel Piza, de O Estado de S.Paulo, que refez a viagem realizada pelo escritor pelo Rio Purus, na Amazônia, para demarcar as fronteiras entre Brasil e Peru e o euclidianista José Márcio Lauria. "O centenário da morte de Euclides da Cunha traz de volta o massacre de Canudos, descrito magistralmente em Os Sertões, livro que começa como uma série de despachos para O Estado de S. Paulo e torna-se um clássico – primeira visão do Brasil profundo. Um ‘novo jornalismo’ que combina reportagem de campo e ciência", disse Dines no editorial que abre o programa.

Um homem obstinado

Republicano convicto, Euclides da Cunha protagonizou em 1888 uma polêmica que marcou a sua trajetória. Aluno da Escola Militar, no Rio de Janeiro, onde estudava Engenharia, o jovem cadete defendia o direito de os militares exprimirem suas opiniões políticas. Impedidos de comparecer a um evento republicano, os alunos combinam um protesto para o momento da revista da tropa. Ao sinal, todos deveriam partir seu sabre-baioneta nos joelhos. Mas somente Euclides cumpriu o prometido. Após tentar em vão quebrar a arma, o cadete a atira no chão, aos pés do ministro da Guerra.

Para evitar que o cadete fosse transformado em mártir pelo movimento republicano, Euclides foi poupado do enforcamento previsto no Código Militar para casos graves de insubordinação. Mas, em seguida, foi desligado do Exército sob o pretexto de "incapacidade física". O assunto repercutiu na imprensa e no parlamento, foi tema de colunas em diversos jornais, e rendeu ao jovem um convite para escrever em A Província de S.Paulo, jornal que defendia a mudança de regime de governo. Tem início a amizade entre Euclides da Cunha e o diretor do jornal, Júlio Mesquita, que durou décadas.

Seus artigos – inicialmente publicados sob pseudônimo - pediam uma revolução política. Após a Proclamação da República, com apoio do ex-professor Benjamin Constant, então ministro da Guerra, Euclides foi reincorporado ao Exército. Formou-se Engenheiro Militar em 1892, mas quatro anos depois, pediu reforma. "Ele começa a fazer muitas críticas ao que se passa no panorama da República. Inclusive quanto à corrupção que existe muito no início do novo regime. E, principalmente, quanto à perda dos ideais republicanos. Você começa a perceber nas cartas o início de uma decisão, que vai demorar um pouco, de sair do Exército, por causa disso. Por causa da desilusão com a República", explicou Walnice Galvão.

A guerra eternizada

Em 1896, logo após a Proclamação da República, explodiu no sertão da Bahia a Guerra de Canudos. Comandados pelo líder religioso Antônio Conselheiro, beatos, jagunços e ex-escravos organizaram um movimento messiânico que rejeitava as mudanças que o novo regime provocara nos poderes da Igreja. Taxado de "restaurador do trono", foi severamente criticado. "Euclides começa a se interessar por Canudos em um artigo que escreve para O Estado de S.Paulo chamado ‘A nossa Vendéa’", explicou Roberto Pompeu de Toledo. O texto comparava o conflito com a Revolução Francesa e afirmava que os "revolucionários" eram contra o regime republicano. "Ele está contaminado por aquele pensamento da elite brasileira de que ali havia uma trincheira de malfeitores que estavam conspirando contra o regime", disse.

A pedido de Euclides, Júlio Mesquita solicitou ao ministro da Guerra que o escritor participasse da comitiva como adido militar, um privilégio que os demais correspondentes não desfrutavam. O escritor chegou à Bahia pouco antes do final do conflito, mas ainda a tempo de presenciar as últimas batalhas. Ao todo, O Estado de S.Paulo publicou 34 artigos e 57 despachos telegráficos sobre o conflito. Na sede do arquivo do jornal, Dines leu um trecho do primeiro telegrama enviado pelo correspondente: "‘Afirmam as testemunhas um fato que eu já previra. Quatro ou seis jagunços faziam estacar, perturbado, um batalhão inteiro’".

A Guerra de Canudos é um episódio crucial na imprensa brasileira. "É o primeiro momento em que os jornais mandam enviados especiais para cobrir um evento que está galvanizando a população. Não é à toa, isso é proporcionado por um avanço tecnológico que é o telégrafo. O telégrafo chega até Monte Santo e possibilita que os correspondentes mandem as suas matérias para os seus órgãos. Mas até então é uma meia dúzia, talvez um pouco mais, de enviados dos jornais, naturalmente fazendo uma cobertura parecida com aquilo que nos EUA se chama de embeded, incorporados ao Exército. Muitos deles até faziam parte, tinha essa duplicidade", explicou Roberto Pompeu de Toledo.

Toda a cobertura era censurada. O Exército, que instalara o telégrafo, revisava as reportagens antes de enviar aos órgãos de comunicação. O correspondente do Jornal do Commercio, Manuel Benício, foi afastado da função por ser "incômodo", conforme explicou Roberto Pompeu de Toledo. "Era uma cobertura melhor, mais viva, mais corajosa que a de Euclides", avaliou. "É muito diferente o Euclides jornalista. Até dá a impressão de que ele estava escondendo a bala, o estoque, a munição dele para o livro. Realmente o livro é uma coisa esplendorosa, é um grande momento da literatura brasileira".

Jornalista ou escritor?


Dines questionou se Euclides da Cunha era "um jornalista ou um escritor que escrevia em jornal". Walnice Galvão explicou que no início do século 20 era comum que intelectuais e profissionais de diversas áreas – como Direito e Medicina – escrevessem artigos em jornais. Estas colaborações tornavam o nível das publicações "altíssimo". Roberto Pompeu de Toledo acrescentou que o conceito de jornalista era diferente do adotado atualmente.

"Não existia um profissional tal qual nós o entendemos hoje. Euclides era muita coisa. Era engenheiro, era militar, geólogo amador, sociólogo amador, ele era tudo. E, evidentemente, colaborou muito com a imprensa. Aliás, não só colaborou, ele trabalhou. Ele era redator de O Estado de S.Paulo numa certa fase da vida dele, às vésperas de ser enviado para Canudos. Então, houve períodos em que ele parecia um pouco esse jornalista profissional que nós somos hoje. Agora, eu não diria que a produção dele é uma produção jornalística, especialmente quando estamos falando de Os Sertões", disse Roberto Pompeu de Toledo.

Daniel Piza avaliou que Euclides da Cunha mescla jornalismo e literatura na cobertura da Guerra. "A gente vê claramente que ele é um escritor, um homem de letras indo a um local para testemunhar um fato. Ao mesmo tempo ele é um repórter na essência porque ele chega como alguém que tem que fazer despachos para um jornal, tem que apurar as informações. E faz esse trabalho muito bem a tal ponto que ele chega a Canudos com uma carga de preconceitos e de visões pré-estabelecidas e vai abrindo mão daquilo porque os fatos o obrigam. Então, nesse aspecto, ele é sim um pioneiro do jornalismo moderno e acho que tem essa coisa de ser ‘o novo jornalista’ porque o estilo dele não é só o estilo que traz informações, mas que também te faz se sentir no ambiente com recursos literários."

De vilões a heróis

Ao retornar de Canudos, o escritor tem uma outra visão do conflito. Walnice Galvão explicou que Euclides da Cunha cultiva uma atitude dúbia em relação ao Conselheiro em Os Sertões. "Ele diz, às vezes, que era um homem genial e, outras vezes, que é um bufão, um louco falando sozinho. Ele tem as duas coisas misturadas", contou. "Mas ele foi ganho pela admiração que teve pelos canudenses. Ele foi pra lá e viu que eles lutavam até a morte pela suas convicções, pelos seus princípios. Ele ficou muito mal. Ele sai dois dias antes do fim da guerra e fica ruminando aquele livro. Fica cinco anos escrevendo, estudando, porque aquele livro precisa de muito estudo pra ser escrito. Ele já escreve com a convicção de que está escrevendo o ‘livro vingador’, que é como ele chama o livro em diversas ocasiões. E foi uma reviravolta muito penosa", avaliou.

O Observatório foi a São José do Rio Pardo, cidade paulista na qual Euclides da Cunha escreveu parte de Os Sertões e onde hoje descansam seus restos mortais. Engenheiro de Obras Públicas de São Paulo, Euclides foi designado para reconstruir uma ponte metálica destruída em uma enchente. "Quando ele chegou, já havia boa parte - especialmente de ‘A Terra’ - em estado de publicação. Ele retocou, editou, a parte de ‘O Homem’ e ‘A Luta’. O essencial da presença de Euclides da Cunha em São José do Rio Pardo foi ter dado a fórmula definitiva ao Os Sertões", explicou Márcio Lauria. Dines mostrou aos telespectadores a cabana de zinco e sarrafos à beira do rio que servia de escritório durante o período.

"É um livro da perplexidade do encontro de um Brasil com um outro Brasil. De um Brasil que o Euclides chama de ‘o Brasil do litoral’, que encontrou o ‘Brasil do sertão’. Um encontro de um Brasil urbano, conectado com o mundo, com um Brasil que ficou pra trás, atrasado. E esse choque é exposto como pano de fundo a uma guerra muito simbólica, muito emblemática, e muito rica em detalhes, nas suas evoluções, nos seus episódios", disse Roberto Pompeu de Toledo.

Após o sertão, a selva

Em 1904 Euclides da Cunha se candidatou para uma nova aventura. Por interferência do Barão do Rio Branco foi escolhido para chefiar a comissão de demarcação das fronteiras entre Brasil e Peru. Uma viagem de cerca de um ano na floresta amazônica. "Euclides tinha o espírito muito extremista, isso é muito simpático nele, ele era muito aventuresco, ele não se acomodava em nada, ele queria outra aventura. Não contente em ter ido à Guerra de Canudos, que não era pouco, não contente em já ser um homem importantíssimo - membro da Academia Brasileira de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, autor conhecido no Brasil inteiro – ele cismou que queria ir pra Comissão de Reconhecimento do Alto Purus", relembrou Walnice Nogueira.

Daniel Piza explicou que durante a longa e atribulada viagem pela Amazônia, Euclides viu o conflito entre o homem e a natureza. "Assim como os sertanejos, que ele diz que eram ‘fortes’ para resistir ao meio hostil, ele viu mesmo com os seringueiros, com os caboclos daquela região do Acre que eram ‘fortes’ também porque eram nômades e tinham que se acostumar a uma natureza bastante adversa. Em uma tão importante frase quanto ‘o sertanejo é antes de tudo um forte’, ele definiu da seguinte forma: ‘o seringueiro trabalha para escravizar-se. Então, ele captou que era um regime de trabalho muito perto da escravidão e disse que só teria jeito a Amazônia se você começasse mudando as relações trabalhistas’", contou.

A tragédia pessoal que abalou o país

Ao retornar da expedição, Euclides encontra sua mulher, D. Saninha, grávida. Há alguns meses, ela mantinha uma relação extraconjugal com o jovem cadete Dilermando de Assis. "O casamento era um desastre. Há inúmeras testemunhas e todo mundo sabia que aquele casamento não tinha dado certo, era da mais absoluta incompatibilidade", contou Walnice Galvão.

"D. Saninha jurava que ia romper com o Dilermando e que aquilo não iria adiante, mas ela não conseguia. Era uma paixão, realmente, de parte a parte. Até que então, um dia, não se sabe direito a circunstância, mas sabe-se que ela pegou os filhos, menos o mais velho, que já estava na Escola Militar, e foi embora. Fugiu de casa e foi para casa do Dilermando, no bairro da Piedade", relembrou.

No chuvoso domingo no qual ocorreu a tragédia, Euclides invadiu a casa de Dilermando com revólver em punho. Assim que o cadete surgiu na sala, atirou contra ele, mas o Dilermando era campeão de tiro. Apesar de atingido, reagiu e matou o escritor com dois disparos. A notícia correu a cidade e estampou as manchetes dos jornais. Enquanto a imprensa paulista mantinha discrição, a carioca explorava o crime. "No Rio, os jornais se divertiram com o que houve", disse Walnice.

Dois anos depois, o cadete foi julgado e absolvido por legítima defesa. "O Brasil inteiro queria que ele fosse guilhotinado, mas não conseguiram. Eu publiquei os Autos do processo, não tinha jeito de dizer que não era legítima defesa porque era. Alguém invade a sua casa dando tiro, você se defende. Houve apelação para o Supremo e ele ganhou outra vez", disse a professora. Imediatamente após sair da cadeia, casa-se com D. Saninha.

Um século depois, a história sem ponto final


"De vez em quando, alguém ressuscitava a história. Faziam entrevista com o Dilermando e ele falava mais do que devia porque tinha muita culpa em cima dele. Há uma frase, que é de um dos jornalistas da época, não se sabe se o jornalista inventou ou se foi o Dilermando que disse: ‘eu cometi o crime de matar um Deus’. Passou o resto da vida execrado, apesar de ter sido absolvido duas vezes", enfatizou Walnice Galvão.

Sete anos após o crime, uma nova tragédia abalou a família. O filho preferido de Euclides, estimulado pela família a buscar vingança pela morte do pai, morre em uma troca de tiros com Dilermando de Assis. "Uma família destroçada pela sucessão de assassinatos e vinganças onde não há vilões e todos são vítimas. Mas a força de suas palavras foi maior. O escritor ficou eternizado como um dos maiores nomes da cultura nacional. E sua grande obra, Os Sertões, gerou um formidável acervo: dezenas de reportagens, livros, trabalhos acadêmicos, curtas e longas-metragens e até uma mini-série de tv. Esta é uma história cujo desfecho ainda não foi escrito", disse Dines.

Matéria extraída e adaptada deste link para o portal IG

O Observatório da imprensa pode ser assistido todas as terças, às 22h40, na TV Brasil (antiga TVE). (veja a lista de canais)

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