terça-feira, 4 de agosto de 2009

Especial Folha de São Paulo 2

Contexto histórico fez de "Os Sertões" um livro- símbolo no País

Por Regina Abreu, em especial da Folha de São Paulo publicado em 02 de agosto de 2009.

Quando o livro "Os Sertões" foi lançado em 1902, na sede da editora Laemmert à rua dos Inválidos, no centro do Rio de Janeiro, ninguém supunha, nem mesmo seu autor, o sucesso de vendas e de crítica que adviria nos anos seguintes. A surpresa foi tão grande que Sílvio Romero, um dos mais importantes críticos do período, assim se referiu à consagração súbita da obra e de seu autor: "De Euclydes da Cunha pode-se dizer que se deitou obscuro e acordou célebre com a publicação de "Os Sertões"." De 1902 a 1909, ano da trágica morte de Euclydes, o país conheceu três edições do livro, chegando a atingir 10 mil exemplares de venda. Num país onde se registrava 85% de taxa de analfabetismo, esse sucesso de vendas expressava efetivamente um best-seller. É preciso ter claro que o autor debutava nas letras. "Os Sertões" era seu primeiro livro e ele se via muito mais como engenheiro do que como escritor. A consagração súbita do livro teve pois um efeito no próprio autor, que, em carta a Araripe Jr., outro importante crítico do período, chegou a confessar que, após o êxito de sua primeira obra literária, ele, "que até então era um engenheiro letrado, com o defeito insanável de emparceirar às parcelas dos orçamentos as idealizações da arte", tinha subitamente se transformado "num escritor apenas transitoriamente desgarrado na engenharia". Ou seja, a consagração de "Os Sertões" serviu também para dar à luz o escritor Euclydes da Cunha.

A unanimidade em torno da relevância do livro foi tão grande que ele conheceu uma glorificação meteórica nos seus pouco mais de seis anos de vida posteriores ao lançamento. Um dos coroamentos do sucesso veio em maio de 1903, com a nomeação para o cargo de sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, instituição das mais renomadas na ocasião. Ainda no mesmo ano, foi eleito para a Academia Brasileira de Letras, na cadeira que tinha Castro Alves como patrono. O livro atravessou esses cem anos aureolado por crescente prestígio. Diversas enquetes realizadas em diferentes épocas com intelectuais têm apontado "Os Sertões" como uma das obras mais representativas da cultura brasileira, uma espécie de "livro número 1" indispensável para quem quer conhecer o Brasil. Chegou a ser chamado de "Bíblia da nacionalidade", obra que expressa o dilema nacional, ou seja, que procura sinalizar características capazes de distinguir o país enquanto civilização nacional autêntica.

Leituras diversas Independentemente das razões que cercam a unanimidade da crítica e do público em torno da obra-prima de Euclydes da Cunha, o interessante é perceber que estamos diante de um livro que foi adquirindo uma força simbólica capaz de desempenhar funções sociais que vão muito além de suas qualidades literárias ou científicas. O livro foi sendo investido de uma espécie de valor sagrado, tornando-se citação obrigatória da mais vasta gama de intelectuais brasileiros. É interessante também acompanhar como, ao longo destes mais de cem anos, o livro foi servindo a diferentes leituras em função das mudanças de interesses no campo da literatura, da política e, sobretudo, da construção do Estado-nação. Podemos destacar alguns desses momentos. Primeiro, o momento da consagração do livro no início do século 20. Os três críticos literários que guindaram o livro ao mais alto escalão, Araripe Jr., José Veríssimo e Sílvio Romero, tinham alguns pontos em comum: a origem provinciana e as crenças no valor da ciência e em uma sociedade regida pelos princípios do talento e do mérito.

A "trindade crítica do realismo" mantinha vínculos importantes com os principais focos de renovação intelectual e política, compostos de intelectuais com pequeno capital social, na grande maioria vindos das diversas províncias espalhadas pelo território, que tomaram contato com o ideário científico em instituições como a Faculdade de Direito do Recife ou a Escola Militar no Rio. Esses críticos, além de apontarem as qualidades literárias do livro, apropriaram-se de seus aspectos mais contundentes, sublinhando a preeminência da natureza na formação da identidade nacional, sobretudo no sertanejismo. Como "escritores sertanejos", ou seja, como escritores que vinham do interior do país e que afirmavam na capital federal um olhar diferenciado e singular em oposição aos princípios da sociedade de corte que ainda vigoravam no país, esses críticos utilizam "Os Sertões" como bandeira de uma cruzada pelo valor da ciência articulado com a aspiração de uma nova postura ética, o valor do talento e do mérito como princípios sociais reguladores. Euclydes da Cunha não tinha padrinhos, não fazia parte da roda de literatos da rua do Ouvidor. Euclydes representava um novo modelo de intelectual que apenas se esboçava. Foi isso que os críticos pressentiram.

Martírio

Um outro momento importante ocorre após a morte trágica do autor. A ocasião foi propícia para a construção do mito do mártir da nacionalidade, representação que se agregou ao escritor e que só foi ampliada nos anos que se seguiram. Características marcantes de "Os Sertões" eram associadas a aspectos da personalidade e da trajetória do escritor. Euclydes da Cunha passou a simbolizar a conciliação de vertentes de pensamento até então tidas como inconciliáveis. A figura do engenheiro que se mesclava com a do escritor, construindo uma ponte metálica em São José do Rio Pardo, no interior de São Paulo, de acordo com as tecnologias mais avançadas da técnica e da ciência, ao mesmo tempo em que escrevia um livro sobre as qualidades dos habitantes de uma região inóspita do interior do Brasil, passava a ser uma metáfora para aqueles que se dedicariam a pensar o Brasil daí em diante. Euclydes da Cunha era apropriado como o escritor que sabia como nenhum outro conciliar os contrastes.

Assim como o escritor, o Brasil era visto como terra de contrastes, país que era no mínimo dois e procurava a conciliação consigo mesmo, com suas metades, com suas múltiplas faces. A polifonia do livro permitiu aproximações plurais, mas o que é mais significativo é a associação de "Os Sertões" com a representação do próprio país. A ideia de uma obra aberta, uma Bíblia onde diferentes aspectos da nação podiam ser encontrados, inspira pensadores e políticos em todo o decorrer do século 20. Um deles foi o pesquisador Edgar Roquette Pinto (1884-1954), que, entre suas muitas realizações, criou, na qualidade de diretor do Museu Nacional, uma sala em homenagem a Euclydes da Cunha ao lado da sala Humboldt. No dia da inauguração, Afrânio Peixoto estabeleceu uma analogia entre Euclydes da Cunha e os bandeirantes e tratou o livro "Os Sertões" como instrumento para descobrir o Brasil. Euclydes era apresentado como "o novo bandeirante de uma nova entrada para a alma da nacionalidade brasileira". Mas o livro foi também apropriado para justificar políticas de Estado. Durante o Estado Novo, o governo federal tinha entre suas principais metas a virada para o interior, visando colonizar regiões ainda pouco exploradas. Essa meta foi explicitada por Cassiano Ricardo, um dos ideólogos do Estado Novo, num livro intitulado "A Marcha para o Oeste".

Letras agrestes

Euclydes da Cunha foi tomado como símbolo da "tradição de bandeirar", e "Os Sertões", como roteiro para os "bandeirantes modernos" do Estado Novo. A bandeira era tomada em sentido mítico. Existiria, assim, um "bandeirante anônimo caminhando no sangue de cada um de nós". Cassiano Ricardo visava legitimar o projeto de colonização do interior instituído por Getúlio Vargas, que tomou a mesma denominação de seu livro. Além de constituírem a primeira democracia nascida da terra e o primeiro governo independente de Portugal, as bandeiras teriam criado nossa geografia, unindo todas as raças e povoando nosso território. Euclydes teria sido um bandeirante pioneiro. E isso por vários motivos: a insubmissão republicana; o estilo agreste e retorcido (escreve como um cipó); o físico (ele era um caipira, um mameluco, com cerdas de bororo); o modo como escreveu "Os Sertões" (no rancho); a atitude de acompanhar o batalhão paulista a Canudos, como correspondente de guerra. Mas é importante chamar a atenção para outras leituras de Euclydes da Cunha e de "Os Sertões" que não se tornaram tão emblemáticas. No ensaio "Engenheiro Físico Alongado em Social e Humano", Gilberto Freyre não trabalha com a oposição sertão versus litoral. Freyre parte da visão conciliatória, chegando mesmo a desconsiderar a importância de confrontar o sertão e o litoral. Do seu ponto de vista, tratava-se de "unir-se o sertão com o litoral para a salvação do Brasil", fazer "caminhos entre as cidades e os sertões", criar comunicações entre o "deserto brasileiro" e o "litoral agrário". Para Freyre, a questão que se deduzia a partir da leitura de Euclydes era muito mais a necessidade de maior circulação entre as regiões do que a ideia de uma "marcha para oeste" ou para dentro. Se "Os Sertões" vem representando uma unanimidade nacional em termos da importância conferida ao livro no contexto do pensamento social brasileiro, essa unanimidade é complexa, polissêmica e aberta a múltiplas e variadas interpretações. Talvez seja exatamente essa polifonia que faz de "Os Sertões" e de seu autor elementos permanentes no imaginário nacional.

REGINA ABREU é antropóloga, professora da UniRio (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro) e autora de "O Enigma de "Os Sertões'" (ed. Rocco).


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