terça-feira, 4 de agosto de 2009

Especial Folha de São Paulo 1

O texto a seguir foi escrito por Marco Antônio Villa, que é professor de história na Universidade Federal de São Carlos (SP) e autor, entre outros livros, de "Canudos - O Povo da Terra" (Ática). Foi publicado em um especial da Folha de São Paulo sobre o escritor, no dia 02 de agosto corrente. Ele é parte do esforço do Blog em dar acesso ao maior número de interessados à produção jornalística e acadêmica acerca do escritor homenageado. Os demais trechos do especial serão publicados em outros posts; nesse primeiro, o citado professor fala da melancolia presente ao longo de toda a vida de Euclides da Cunha, relacionando-a ao desencanto com a sociedade da época, o texto foca especialmente no deságue dessa sensação no desfecho trágico da vida do escritor, vale a pena ler:

Foi para matar ou morrer; mas queria morrer

Se Eça de Queiroz dizia que nada mais era que "um pobre homem de Póvoa de Varzim", Euclydes da Cunha definiu-se como "um tímido": "Nunca perdi este traço de filho da roça que me desequilibra intimamente ao tratar com quem quer que seja".

Euclydes foi um homem de Estado e toda sua reflexão foi dirigida ao poder: em momento nenhum falou para o povo. Foi um crítico do Brasil. Uma semana antes de morrer, disse ao cunhado: "Vou atravessando esta existência no pior dos piores países possíveis e imagináveis. (...) Nostalgia e revolta: tu não imaginas como andam propícios os tempos a todas as mediocridades. Estamos no período hilariante dos grandes homens-pulhas, dos Pachecos empavesados e dos Acácios triunfantes. Nunca se berrou tão convictamente tanta asneira sob o sol!". Anos antes, escreveu: "Este país é organicamente inviável".

O Brasil passava pelo que chamou de "pasmaceira trágica". Seu grande amigo, Francisco Escobar, tentou articular uma candidatura a deputado federal.

Euclydes logo desistiu: "Ser deputado nesta terra é hoje uma profissão qualquer - para a qual decididamente não me preparei. Os homens repelem, com razão, os intrusos."

Ironizava a política ("nesta terra é a ocupação cômoda dos desocupados") e os corruptos. Ao mesmo amigo, relatou que foi convidado para cuidar da construção de um presídio: "Calcula lá, se podes, o enorme prazer com que vou desempenhá-la... e se pudesse escolher também os presidiários...". Outros da sua geração, como Silva Jardim e Raul Pompeia, também se desiludiram com o novo regime e tiveram mortes trágicas.

Quedas

Pompeia se suicidou no Natal de 1895, semanas após ter sido demitido do cargo de diretor da Biblioteca Nacional. Acreditava que a República tinha perdido o rumo.

Já Silva Jardim, o grande tribuno do período da propaganda republicana, não conseguiu sequer ser eleito deputado constituinte, em 1890. Desanimado, no ano seguinte, viajou para a Europa e acabou morrendo tragicamente na Itália: ao visitar o Vesúvio, caiu numa fenda próxima à cratera e foi tragado pelo vulcão.

As discordâncias de Euclydes com o novo regime foram manifestadas ainda durante a Presidência de Deodoro da Fonseca [1889-91]. No quadriênio seguinte abandonou o Exército, mudou-se para São Paulo e tornou-se funcionário da Superintendência de Obras Públicas. Permaneceu uma década e depois rumou para o Rio de Janeiro, obtendo, por meio do Barão do Rio Branco, ministro das Relações Exteriores, comissões do Itamaraty, mas sem fazer parte do corpo diplomático.

Só obteve a nomeação de professor de lógica para o Colégio Pedro 2º [então Ginásio Nacional] graças à articulação com o grupo político conhecido como "Jardim da Infância", vinculado a Afonso Pena [presidente de 1906 a 1909], especialmente com o deputado Carlos Peixoto. Afinal, a lei dava ao presidente da República o direito de escolher qualquer um entre os dois primeiros colocados do concurso público. Mesmo assim, não perdeu oportunidade para criticar Farias Brito, o primeiro colocado: "um pobre filósofo, cearense e anônimo"; autor de um livro "que ninguém leu". Mas nunca foi oportunista.

Quando Floriano Peixoto, em 1893, tinha enorme poder, o recebeu na sede do governo -Euclydes ainda era visto como o cadete que se rebelou contra a Monarquia. O presidente falou que poderia nomeá-lo para o que ele desejasse. O recém-formado respondeu que queria que fosse cumprida a lei, ou seja, um ano de estágio na Central do Brasil: "Quando me despedi pareceu-me que no olhar mortiço do interlocutor estava escrito: nada vales". Isso pode explicar o cruel retrato que fez, anos depois, de Floriano em "Contrastes e Confrontos": "O seu valor absoluto e individual reflete na história a anomalia algébrica das quantidades negativas; cresceu, prodigiosamente, à medida que prodigiosamente diminuiu a energia nacional. Subiu, sem se elevar -porque se lhe operara em torno uma depressão profunda".

Como bem definiu Roberto Ventura, seu biógrafo, Euclydes "seguiu sendo um eterno insatisfeito com as condições de exercício de suas atividades profissionais". Da Escola Militar foi expulso, em 1888; depois não se adaptou à vida de engenheiro militar; em São Paulo acabou pedindo demissão da secretaria de Obras; criticou a expedição que dirigiu no rio Purus e os trabalhos de cartografia no Ministério das Relações Exteriores. E como professor? Foram somente dez aulas; a última, dois dias antes do fatídico 15 de agosto. É possível que tenha sido feliz somente nos três anos e meio que passou em São José do Rio Pardo (SP), justamente onde pôde escrever com tranquilidade a sua obra-prima. Lá teve amigos e uma vida pessoal sem sobressaltos.

Mesmo assim, nos primeiros meses, reclamou: "Tenho a existência aspérrima de um condenado a trabalhos forçados, à margem de um rio odiento, diante do espantalho de uma ponte desmantelada".

Saúde frágil

Desde a Escola Militar teve uma saúde frágil. Durante a viagem para a Bahia, para cobrir a Guerra de Canudos, já estava doente. No retorno ficou três meses de licença médica. A tuberculose o acompanhou durante toda a vida. Ironizava os escarros de sangue: são os "telegramas da morte". Na Amazônia contraiu malária, o que agravou ainda mais seu estado.
Nos últimos meses de vida, fez inúmeras queixas aos amigos. Em julho de 1909, escreveu ao cunhado explicando que não podia ir visitar o pai: "Escrevo-te de cama. Anteontem à noite tive uma hemoptise e continuo mal, ameaçado de outra". Mesmo assim quis viajar, mas o médico o proibiu, pois "não chegaria vivo sequer a São Paulo".

Três dias antes de morrer, novamente ao cunhado, recordou que, se abandonasse o regime determinado pelo médico, "não resistirei". E tudo era agravado pelo estado depressivo crônico, amenizado pelo escritor como "meu pessimismo abominável". O casamento com Ana Emília Ribeiro, filha do general Sólon, foi um desastre. Euclydes era um homem difícil, de gênio irascível. A vida nômade (que ele chamava de "erradia e escorregadia") e as dificuldades financeiras agravaram a crise do casal. Tinha dificuldades ao tratar e falar com as mulheres.

Francisco Venâncio Filho, que publicou parte da correspondência do escritor, notou a ausência de cartas de amor. Sylvio Rabello, seu biógrafo, escreveu que "o outro sexo ele trazia narcisicamente em si mesmo": "Não se conhece nenhum gesto, palavra ou apenas olhar que indicasse a ternura do homem saudável pela mulher ou pelas mulheres que fosse encontrando pelo caminho". Na conferência que fez sobre Castro Alves, em São Paulo, não há menção aos amores do poeta baiano.
Já em "Os Sertões", as mulheres são retratadas, com raríssimas exceções, como monstros, repugnantes, viragos, bruxas. Uma delas, de acordo com o escritor, era "uma megera assustadora, bruxa, rebarbativa e magra -a velha mais hedionda talvez destes sertões". Outra era um "demônio de anáguas". Nem as imagens de santas, encontradas em Canudos, se salvaram: "Marias Santíssimas, feias como megeras".

As longas ausências do lar, sempre a trabalho, continuaram. A jovem cônjuge acabou buscando consolo no cadete Dilermando de Assis. O escritor viajou para a Amazônia, nomeado pelo Barão do Rio Branco para chefiar a Comissão Brasileira de Reconhecimento do Alto Purus, na fronteira com o Peru. Partiu a 13 de dezembro de 1904. Regressou 13 meses depois.

Pesadelo

Passou semanas sem receber notícias da família. Na Amazônia tinha pesadelos. Era obrigado a dormir com uma vela acesa, sempre próxima ao corpo, tanto que, certa vez, chegou a queimar os lençóis, pois era perseguido pelo espectro de uma mulher, que ora entrava pela janela, ora pela porta do quarto, de acordo com o escritor Medeiros e Albuquerque.
No regresso encontrou a mulher grávida de dois meses. O bebê nasceu em julho. Sobreviveu somente uma semana. Em 1907, em novembro, nasceu mais um filho. Também não era seu. O pai, novamente, era Dilermando (mesmo assim registrou no seu nome e dizia que "era uma espiga de milho num cafezal"). O caso era público. A mulher não suportava mais suas viagens. As brigas eram constantes. E vinham desde os primeiros anos do casamento.

Em carta ao amigo, o poeta Vicente de Carvalho, em fevereiro de 1909, seis meses antes da tragédia da Piedade, escreveu: "Sinto que vou escorregando por uma metafísica horrorosa abaixo, e cedendo ao declive não sei onde irei parar". Insatisfeito com os rumos da República, humilhado pelos dilemas de um casamento fracassado e receoso das consequências de uma separação, com a saúde piorando a cada dia, sempre com problemas financeiros e, principalmente, sem condições de escrever o tão sonhado livro sobre a Amazônia, a manhã chuvosa de 15 de agosto de 1909 pode ter sido a sua libertação, de tantos fardos, de tanta angústia.

No mesmo dia, um domingo, foi publicada uma longa entrevista que deu para Viriato Corrêa. Não chegou a ler. Logo cedo se dirigiu ao bairro da Piedade, para a casa de Dilermando de Assis, onde sua mulher tinha passado a noite. Foi para matar ou morrer. Mas queria morrer.

(Marco Antônio Villa)

Nenhum comentário:

Postar um comentário