domingo, 15 de novembro de 2009

Euclides da Cunha: uma odisseia nos trópicos

Resenha do livro de Frederic Amory, publicado pela editora ateliê editorial.

Por Francisco Foot Hardmann

Este é um livro que já nasceu clássico. Primeiro, porque escrito por um brasilianista e euclidianista que frequentou profundamente os estudos da história, cultura e literatura do Brasil por quase 60 anos. Segundo, porque escrito num estilo equidistante tanto da cena narrada quanto das fontes da pesquisa, escorreito na forma e ponderado nos juízos críticos, sem prejuízo da interpretação pessoal de alguém que conheceu intimamente toda a obra do biografado. E mais: de alguém que dialogou com todas as biografias disponíveis de Euclides, do estudo pioneiro abrangente de Francisco Venancio Filho (1940) ao ensaio inconcluso de Roberto Ventura (2003), dos trabalhos de Elói Pontes (1938), Sylvio Rabello (1946), aos estudos mais temáticos e fundamentais de Olympio de Souza Andrade (1960) e de Leandro Tocantins (1968). Traça com todos esses antecessores interlocução permanente. O autor não é, pois, um novato, nem arroga qualquer autoproeminência. Fala sempre ancorado em textos, sejam os documentos, sejam os intérpretes que lhe antecedem. Por isso, sua narrativa sai com essa cara de vinho bem envelhecido. Os leitores têm só a ganhar, em sabor, mas igualmente em rigor.

Quando Frederic Amory faleceu, em janeiro passado, em Berkeley, cidade que esse bostoniano liberal radical adotara há pelo menos quatro décadas como morada, por conta de seu trabalho como professor de literatura medieval inglesa e especialista reconhecido em literaturas nórdicas (Islândia e Noruega) na Universidade de San Francisco, nós, seus amigos, repentinamente separados dessa alma que sabia se mostrar, sempre, tão generosa em sua altivez de aristocrata do espírito, pensamos: será que se repetirá, ainda uma vez, a “maldição” dos biógrafos de Euclides, relembrada anedoticamente por outro pranteado amigo – Roberto Ventura –, ali mesmo, em São José do Rio Pardo, na Semana Euclidiana de 2002, na terceira noite anterior à sua morte? Roberto referia-se ao caso de Luiz Vianna Filho, que não teria levado a termo projeto de biografia euclidiana, depois de ter escrito as de Machado de Assis e Rui Barbosa. Pensava também em Olympio de Souza Andrade, que deixara inédito o interessantíssimo ensaio Euclides da Cunha depois de Os sertões, até hoje a reclamar a devida publicação, como justo prolongamento e desfecho dessa obra-prima que é seu História e interpretação de Os sertões.

Mas, não. Euclides da Cunha: uma odisseia nos trópicos estava pronta. E foi assim, como lembra o colega e amigo Leo Bernucci no prefácio. Velho e doente há anos, Fred Amory sobreviveu, como tantos outros autores, apenas o bastante para concluir seu projeto de uma escrita que era uma vida. E deu. E nos deu um primor de narrativa, e um trabalho no fôlego mais distendido da melhor tradição acadêmica, livro que passa a integrar, com destaque, qualquer estante de estudos brasileiros e euclidianistas, qualquer seção de “como se fazer uma boa biografia”.

E se você, leitora, leitor, que tiveram paciência de me seguir até aqui, perguntarem de chofre: dê-me pelo menos três razões para adquirir e ler o livro de Amory, eu lhas darei. Ficarei com três, já que não posso dar dez, pois o editor do caderno ultima-me minutos e caracteres. Primeira razão: no rastro de alguns dos biógrafos old generation, Fred foi obsessivo, ambicioso: leu exaustivamente o conjunto da obra de Euclides e também sua fortuna crítica gigantesca, que só emparelha em extensão, na literatura brasileira, com a de Machado, atualizada até recentemente, com o boom notável de novas contribuições nessas duas décadas. Nasce daí uma visão abrangente e compreensiva do conjunto da obra e das principais linhas de interpretação. Basta dizer que, para além dos livros de Euclides, Amory debruçou-se sobre toda a sua ensaística jornalística dispersa e também sobre muita da poesia inédita, pois foi nosso companheiro de viagem, de Bernucci e meu, no projeto da Poesia reunida.

Segunda razão: movido por febre intelectual autêntica, isto é, alheia aos rituais burocráticos do ramerrão universitário, e por paixão permanente pelo Brasil, por suas histórias e culturas, Fred acumulou um saber admirável e próprio de grande brasilianista. Seu biografado não paira como mais um daqueles personagens da série “meu tipo inesquecível”, como sensação excêntrica, mas como homem de seu tempo, como cientista e artista atravessado pelas contradições da época. Estamos diante de uma biografia intelectual no melhor sentido da expressão. Ao perseguir as trilhas do grande escritor, depara-se com o mundo e o Brasil em transformação, nas complexas passagens do Oitocentos ao Novecentos.

Terceira razão: Amory, visitante regular do país desde o início da década de 50, aqui conheceu Rosaura Escobar, uma das filhas de Francisco Escobar, talvez o maior amigo e principal correspondente de Euclides. Ingressou assim cedo no círculo dos movimento euclidiano, participando desde logo das Semanas mitológicas em São José do Rio Pardo. Daí abriu-se um universo. Interagiu com Olímpio de Souza Andrade, Guilhermino César, Oswaldo Galotti, José Bicalho Tostes. Aproximou-se, ao longo do tempo, da memória de Euclides pelo lado pessoal, familiar, psicológico. Mas sua condição de estrangeiro preservou a distância e equilíbrio adequados.

Como nota em suas “Observações Finais”, citando Lord Acton, Fred aceitou o desafio de “julgar o melhor do talento e o pior do caráter”, mas sem cair na tentação de buscar “unidade artística no caráter”. No tumulto da vida, não há coerência. Por isso, ao contrário da busca da “linha reta”, lembra-nos dos “desvios visionários” de Euclides em suas noites amazônicas. Linhas sinuosas, sem lógica, como aquele traçado tão irregular do rio Purus na Carta que desenhou com afinco na grande viagem e que Amory, com sensibilidade, escolheu para encerrar essa sua tão bela narrativa.

E se ainda assim você permanece incrédula(o), e insiste: poderia um scholar de antigas sagas islandesas e norueguesas tratar tão bem de uma epopeia brasileira, tanto a obra quanto a vida de seu autor? Responderei: sim, perfeitamente. Pois na imperfeição das humanidades vividas nesses extremos geográficos e históricos, confluem, nas periferias do círculo polar ártico e do trópico semi-árido ou úmido, as escritas sem fim de homens em luta com a Terra e entre si. Fred, esse raro amigo, que rotulou seu arquivo de recortes, cartas e fotocópias mais valioso de “Meu Brasil”, sabia, como poucos de nós, os segredos dessa “solidão em sociedade” que fez de Euclides da Cunha um de nossos últimos românticos.

Porque tinha, como escriba, a dose certa de desprendimento própria da melhor vocação de pioneer, de explorador de qualquer vastidão, de qualquer Oeste. E nos legou esse belo ensaio biográfico, que certamente ficará. Ainda o vejo brilhar, em nossas gastronomias de Berkeley, com seu humor cáustico, sua curiosidade infantil, seu abraço acolhedor. Se é duro demais perder um amigo, é feliz o dia de celebrá-lo, em meio ao centenário da morte de Euclides, com essa odisseia, que viverá dos sopros da memória, da vida inteligente que lhe cruze os caminhos e, também, de um e outro sobressalto no coração.

Francisco Foot Hardman
é professor titular do programa de teoria e história literária da Unicamp e autor, entre outros, de A vingança da Hileia: Euclides da Cunha, a Amazônia e a literatura moderna (Editora Unesp)

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