quarta-feira, 15 de junho de 2011

Caravanas Euclidianas vira longa metragem. Documentário fino biscoito para as massas.

CARAVANAS EUCLIDIANAS VIRA LONGA METRAGEM: DOCUMENTÁRIO
FINO BISCOITO PARA AS MASSAS.

de Regina Abreu
Antropóloga, professora da UNIRIO.
Autora de O Enigma de Os Sertões - ed. Rocco.
Coordenadora das Caravanas Euclidianas Sexta feira, 9 de abril de 2010.

Chovia muito no Rio de Janeiro. Subimos a rua Francisco de Moura que dá acesso ao Morro Santa Marta levando uma caixa com 50 exemplares do livro Os Sertões e um dvd do filme sobre a vida e a obra de Euclides da Cunha; A Paz é Dourada de Noilton Nunes. Seguia conosco o sambista Edeor de Paula, autor do já clássico samba enredo Os Sertões.Era o começo da proposta de se levar Euclides da Cunha com seu texto barroco, considerado paradoxalmente “difícil” e “importantissimo para se pensar o Brasil”, aos moradores de favelas e comunidades classificadas como de “baixo IDH” do Rio de Janeiro. “Fino biscoito para as massas”, diria Oswald de Andrade...

Primeira parada: Quadra da Escola de Samba Mocidade Unida do Santa Marta. A Rádio Poste, a rádio comunitária da favela já anunciava o evento através dos alto falantes espalhados pelo morro, há mais de duas semanas.A quadra muito grande já invadida por intenso vozerio, buzinas e músicas vindas de vários cantos da favela... Meninos e meninas faziam algazarra correndo por todos os lados da quadra, um dos poucos espaços amplos no morro. Ambulantes aproveitavam para vender pipoca e guaraná. Era um momento de encontros, de festas. O público alegre, descontraido, queria música, cinema, animação. Iniciamos a programação com rápidos discursos do representante do Ministério da Educação e da Reitora da UNIRIO, que saudaram a comunidade convidando-a a aproveitar bem a iniciativa das Caravanas Euclidianas.Em seguida, acompanhado pela bateria mirim da Escola de Samba, Edeor "puxou" seu famoso samba-enredo, também considerado Hino do Euclidianismo. O público gingou, sambou e cantou. Chegou a vez do filme.

Como seria passar um filme sobre Euclides da Cunha para aquele público formado por antigos moradores, jovens estudantes interessados, crianças inquietas? Logo de início A Paz é Dourada conseguia dominar as atenções e a cada minuto, a cada sequência ia emocionando, encantando, com seu ritmo audiovisual que se misturava aos barulhos da chuva forte, aos gritinhos das crianças que brincavam, que pulavam na frente do telão. Tudo muito livre, muito solto. As frases de Euclides libertadas pelo filme ecoavam poeticamente como fragmentos sonoros de outros mundos, outros brasis; outros tempos. E tudo ia se irmanando e se harmonizando com naturalidade, dando a impressão de que Euclides e Os Sertões já eram velhos conhecidos daquela gente da favela. A palavra “favela” vem do sertão, descrita pelo próprio Euclides como uma árvore: favela, que possui muitos espinhos e foi uma forte aliada dos sertanejos na luta contra as expedições militares republicanas. Salve a Favela! Numa favela foi dado o primeiro passo das Caravanas.

Na semana seguinte, já estávamos na estrada em direção a Queimados na Baixada Fluminense. Lá, o clima foi outro. Um grande auditório nos esperava. Tudo muito formal. Com direito a autoridades municipais, cerimoniais e até hino nacional. Uma multidão de meninos, meninas, mulheres, homens feitos, anciãos e anciãs, nos esperava. A cidade parava para nos receber em grande estilo. Mais uma vez, Edeor de Paula emocionou o público com sua voz firme e afinada. Cantou sozinho. No gógó. Foi ovacionado de pé. O mesmo aconteceu com o filme, projetado já tarde da noite.No dia seguinte inauguramos a Oficina de Literatura e Cinema com um grupo de 40 estudantes. Utilizando o espaço bem equipado de uma escola, fizemos a proposta que marcou daí para frente toda a trajetória das Caravanas. Euclides da Cunha descreveu a terra, o homem e a luta de Canudos, no sertão da Bahia no final do século XIX. Que tal sairmos em campo com câmeras de video documentando ecologicamente a terra, o homem e a luta em Queimados no século XXI? Proposta imediatamente aceita, saímos em três grupos pela cidade registrando a partir de um roteiro coletivo as mais claras e transparentes expressões da “alma queimadense". O resultado foi surpreendente. Ao editar o material entendemos que estávamos diante do embrião de um rico trabalho de documentação sobre a terra, o homem e a luta no Rio de Janeiro do século XXI. Durante todo o ano de 2010 viajamos por dezenas de cidades gravando vozes, rostos, paisagens, problemas, questões, movimentos sociais pouco conhecidos e extremamente instigantes. Registramos depoimentos que guardam pérolas como a da história de luta da radio Novos Rumos de Queimados, uma das primeiras radios comunitárias da América Latina; que nasceu como porta-voz da militância dos moradores em busca de soluções para melhoria da qualidade de vida na região. Ou ainda o registro dos versos do cordelista Gonzaga, ex-seringueiro, um dos mais antigos moradores da cidade, que se viu retratado no filme. Viu sua origem sertaneja, sua trajetória de idas e vindas pelas veredas do país em busca de trabalho.“_Amigos Caravaneiros que por aqui passam,desejo me expressarna minha forma caboclaque a longa vida me ensinou.Continuem a lutar sem esmorecer,na certeza de que as Caravanas vão vencer.” No Museu da Maré descobrimos um tesouro de conhecimentos guardados através de fotos e cenários montados para contar a história do complexo da favela da Maré, desde a chegada de seus primeiros moradores, "marcados pela própria natureza".

Dessa vez, o vento foi o principal inimigo. Como encontrar um local para expor os 14 estandartes da Exposição das Caravanas Euclidianas sem que eles voassem? A solução foi improvisar fincando-os nos arames farpados encontrados nos muros do Museu. Era dia de aniversário deste que é o primeiro Museu nas Favelas brasileiras. Os moradores, em clima de festa, visitaram a exposição e foram tecendo seus comentários. Marilene, da comunidade da Nova Holanda, comentou que para ela a luta dos sertanejos em Canudos assemelha-se ainda hoje com a luta das diferentes comunidades que integram o Complexo da Maré, lutando sempre por inclusão social, cidadania, pão e educação.

Cada lugar é uma emoção diferente. Mas, em todos, o momento mais emocionante é quando entregamos o livro Os Sertões para professores e estudantes. Na semana seguinte, foi a vez de subir a serra. Em Teresópolis, a paisagem era outra. Florestas, cachoeiras, muito frio. Ponto de encontro: Escola Estadual Euclides da Cunha criada em 1912. Encantado com as Caravanas, o professor Delmo Ferreira, coordenador de eventos do Colégio, profetizou:"_Depois da passagem das Caravanas Euclidianas pelo nosso colégio, posso afirmar que o professor de quadro negro e giz, morreu. Estamos participando de um projeto que traz, com muito entusiasmo, um clássico da literatura brasileira, sustentado por ferramentas como o audio-visual e a música, o que nos aproxima ainda mais de tão importante conhecimento. É deste dinamismo que a escola; a educação nacional está precisando!” “_A alegria é a prova dos nove”, citando novamente Oswald de Andrade, foi com este espírito de alegria que as Caravanas continuaram por São João de Meriti, Caxias, Campos dos Goytacazes, São Fidélis, Carapebus, Vassouras, Miguel Pereira, Paraty, distribuindo livros, dvds, sorrisos, esperanças, incentivos e talvez principalmente a força da imaginação trazida pelos ventos dos bons pensamentos, como os Euclidianos que encerram essas nossas lembranças.


"_ Acredito no futuro estabelecimento de uma perfeita solidariedade universal envolvendo por inteiro a humanidade. Precisamos de uma forte arregimentação de vontades e de uma sólida convergência de esforços para essa grande transformação indispensável. Porque seu triunfo é inevitável. Garantem-no as leis positivas da sociedade que criarão o reinado tranqüilo das ciências e das artes. Fontes de um capital maior, indestrutível e crescente, formado pelas melhores conquistas do espírito e do coração".
O percurso inicial das Caravanas pelas cidades do estado do Rio de Janeiro foi transformado em um documentário de longa metragem dirigido por Noilton Nunes e já está à disposição dos interessados. Esperamos agora seguir em frente por todo Brasil e atravessar fronteiras chegando a cidades de outros países da América Latina.
Regina Abreu

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