quinta-feira, 14 de junho de 2012

Euclides da Cunha e o meio ambiente

    Mauro Rosso, pesquisador de literatura brasileira, ensaísta e escritor, publicou um especial para o jornal Opção sobre Euclides da Cunha e sua ligação com a defesa do meio ambiente. Confira:

   Euclides da Cunha foi rigorosamente o primeiro intelectual brasileiro a cultivar e externar preocupações com o meio ambiente, inclusive fazendo da ecologia um tema político, de propostas de ação política. Como não poderia mesmo deixar de ser, face à sua formação consolidada, é sob o prisma e lentes do positivismo que registra, observa e critica os embates entre uma civilização, sempre improvisada, com a natureza do país — críticas essencialmente liberais, sem pretensões de mudar o mundo, ou mesmo os governantes, ainda que escritas de forma a sensibilizar as pessoas.

   Ainda com 18 anos, lavrava um protesto em seu primeiro trabalho no jornal “O De­mocrata”, em 4 abril de 1884, — pequeno jornal dos alunos do colégio Aquino, no Rio de Janeiro, onde estudava desde 1883. No artigo, externando o interesse e apreço pela natureza que estaria presente em toda sua obra, ao lado de descrever em viagem de bonde para o colégio as maravilhas do cenário natural que descortinava, as matas e florestas da cidade do Rio de Janeiro, criticava o progresso representado pela estrada de ferro que degradava a natureza

  “(...) Ah! Tachem-me muito embora de antiprogressista e anticivilizador, mas clamarei sempre e sempre: — o progresso envelhece a natureza, cada linha do trem de ferro é uma ruga e longe não vem o tempo em que ela, sem seiva, minada, morrerá! E a humanidade, não será dos céus que há de partir o grande "Basta" (botem b grande) que ponha fim a essa comédia lacrimosa (...) Tudo isto me revolta ,me revolta vendo a cidade dominar a floresta, a sarjeta dominar a flor !”

   Depois, nos textos “Fa­zedores de desertos”, de 1901, e “Viajando”, de 1903, publicados originalmente em “O Estado de S. Paulo” — suas críticas não se dirigem particularmente a ninguém, muito menos a um governo, e sim credita ao próprio avanço humano o efeito maléfico na vegetação, nos recursos hídricos, nos solos, no clima e por extensão, segundo ele, na própria civilização, provocado pelas queimadas de uma agricultura ainda com métodos herdados do período colonial (clamor que Monteiro Lobato também expressaria anos mais tarde, quase que com as mesmas palavras e discurso). Como na maioria de seus textos sobre o tema, Euclides confronta riquezas passadas e farturas naturais com uma realidade arruinada — “temos sido um agente geológico nefasto e um elemento de antagonismo terrivelmente bárbaro da própria natureza que nos rodeia” — explica didaticamente, o processo de agricultura itinerante que ia tornando a terra cada vez mais desabrigada e pobre, e evoca a história ao atribuir a devastação florestal, como um ciclo desde os primórdios, ao indígena brasileiro, continuada pelo colonizador feito um “terrível fazedor de desertos”, fosse o garimpeiro, “atacando a terra nas explorações mineiras a céu aberto, esterilizando-a com o lastro das grupiaras, retalhando-a a pontaços de aluvião” ou lavrador, “eliminando, a partir do mau ensinamento aborígene [a queimada] as grandes extensões de matas e florestas e aviltando o clima”, tornados ambos herdeiros de um modelo nefasto de uso da terra, agravando-o a ponto de esterilizar sua fertilidade e tornar a paisagem uma ruína só, de natureza e de pessoas, inclusive desencadeando fenômenos climáticos e geológicos na formação de desertos e do regime das secas — que dissecaria como ninguém ao dedicar-se ao sertão.

   Euclides contestava um modelo “peculiar e oportunista” de desenvolvimento, então incipiente com a implementação da República, que “povoa despovoando”, “não multiplica as energias nacionais, desloca-as”, fazendo “avançamentos que não são um progresso”, indo “ao acaso, nesse seguir o sulco das derribadas, deixando atrás um espantalho de civilização tacanha nas cidades decaídas circundadas de fazendas velhas”. Não obstante sua crença na ciência, na técnica — aliada ao indissolúvel embasamento cientificista-positivista — Euclides não era um incondicional defensor do progresso pelo progresso, haja vista, por exemplo, a lúcida observação exposta no artigo “Ao longo de uma estrada”, publicado em “O Estado de S. Paulo”, em 18 de janeiro 1902, de um lado criticando o “traço bem pouco animador que caracteriza a distensão das nossas redes de estradas de ferro”, que “progridem arrebatadas por uma lavoura extensiva que se avantaja no interior à custa do esgotamento, da pobreza e da esterilização das terras que vai abandonando”, porquanto de outro lado, sustenta ele, as florestas estavam sendo consumidas nas caldeiras das marias-fumaças, a madeira como o combustível das locomotivas, e na produção dos dormentes que sustentavam os trilhos: retomava, com mais ênfase, o protesto debutante expresso naquele artigo no pequeno “O Democrata”, em 1884. Sob todos os aspectos e ângulos, o engenheiro social transforma-se e assume o engenheiro ecológico.

   Escritor avançado para o Brasil dos anos 1890-1900, fortalecido pelo espírito científico, enriquecido pela cultura sociológica, esmerado pela especialização geográfica e geológica, Euclides viu os sertões com um olhar mais amplo, abrangente e profundo que o de um geógrafo puro, mais do que de um simples geólogo, muito mais que de qualquer antropólogo. Desenha, disseca e interpreta — pioneiramente — o cenário dos sertões, descrevendo com rigoros a exatidão a formação, estrutura e nuances geológicas e climáticas da região — a “terra ignota” — na verdade, antes mesmo do contato in loco, durante Canudos: os dois artigos “A nossa Vendéia”, estampados em “O Estado de S. Paulo” a 14 de março e 17 de julho 1897, já abrigavam considerações, bem fundamentadas, de ordem geográfica, geológica e climática da região, bem como de aspectos étnicos do sertanejo. Os sertões forneceram o mote para artigos de cunho da ecopolítica e da etnopolítica como “As secas do Norte”, de novembro de 1900, e “Olhemos para os sertões”, de março de 1902, ambos publicados em “O Estado de S. Paulo”.

    A partir daí, compõe sua reflexão sobre a seca, a incapacidade geral do país em resolver o problema — evocando exemplos bem-sucedidos de soluções corretoras dos efeitos das secas adotada por povos (“a exploração científica da terra, coisa vulgaríssima hoje em todos os países, é uma preliminar obrigatória do nosso progresso”), desde os romanos, países como Inglaterra e Estados Unidos, “enfrentando e subjugando a natureza adversa, fazendo recuar o deserto, estabelecendo redes formidáveis de barragens, aproveitando as torrentes pluviais, abrindo canais, criando em suma um sistema fecundo de irrigação geral”; em diversos escritos propõe soluções técnicas, dessa ordem, para a questão no Brasil, afastando-se em parte do determinismo geográfico original de sua formação: se é capaz de criar desertos, o homem poderia também extingui-los — e a utilização política da seca que tem servido para “a retórica de congressos e conferências, para projetos mirabolantes, para justificar uma burocracia voraz, perfeitamente digna de salvar o Nordeste. O Brasil não resolve seu grande problema, que não é apenas administrativo porque é igualmente moral, social e político”.

Os sertões, para Euclides, “maravilhosamente exuberantes, barbaramente estéreis”, constituíam a síntese perfeita de uma conformação geográfico-geológico-climática inusitada, complexa, com a etnia — um dos elementos também capitais de seu trabalho intelectual. A natureza dos sertões, a vegetação da caatinga, a flora espinhenta e retorcida, se mesclam, se imiscuem, se fundem com a condição étnico-social dos sertanejos. “(...) Identificados à própria aspereza do solo em que nasceram, educados numa rude escola de dificuldades e perigos, esses nossos patrícios do sertão, de tipo etnologicamente indefinido ainda, refletem naturalmente toda a inconstância e toda a rudeza do meio em que se agitam.”, registra no artigo “A nossa Vendéia”, de 14 de março de 1897.

   Os atentados e abusos cometidos contra a terra, denunciava Euclides, se estendiam aos homens que a habitam — haja vista a proscrição do sertanejo, no “crime bárbaro cometido em Canudos contra um povo abandonado há três séculos”, e a situação do seringueiro amazônico “inteiramente desprotegido dobrando toda a cerviz à servidão completa”, infinitamente pobre e infinitamente triste, sem esperanças, transmitindo “o eco de um anátema vibrando há vinte séculos para a humanidade distante das cidades ricas” ou dos caucheiros “mergulhados silenciosamente na espessura, jungidos à mais completa escravidão”, apontando ali “a mais criminosa organização do trabalho”; ou ainda reportando ao garimpeiro no Distrito Diamantino do século XVIII, “espetáculo original da Fortuna domiciliada em pardieiros, simbiose da Escravidão com o Ouro” — a terra e o homem submetidos a absurdo descaso e desprezo como elementos subalternos, supérfluos, prescindíveis, como se fossem recursos abundantes e inesgotáveis.

   À “exploração científica da terra (...) preliminar obrigatória do nosso progresso”, Euclides preconizava acoplar uma ação técnica de engenharia — “A nossa engenharia não tem destino mais nobre e mais útil que esta conquista racional da nossa terra” — para o saneamento geológico de terras, extinção de desertos, reordenação de grandes áreas e conformações geográficas, prospecção e inventário de recursos e riquezas naturais. E mais: sustentava a urgência de implementação de um grande projeto de integração viária, substituindo as vias naturais, caminhos rústicos, picadas, estradas estéreis, e em decorrência de povoamento e ocupação, entre as regiões norte, sul e a Amazônia — sobre a qual lançou um olhar pioneiro e absolutamente atual, diga-se de passagem. Aliás, a Amazônia tornada rota e destino de fuga dos sertanejos assolados pela seca.

  Ninguém antes de Euclides dedicou-se com tanta ênfase, profundidade e esforço — inclusive vivenciando graves vicissitudes — e em especial pioneirismo, à Amazônia. Fruto de observação e vivência in loco, a produção intelectual amazônica de Euclides transcende o meio livresco e gera uma interpretação larga dos primordiais problemas da região: artigos e ensaios sobre a Amazônia estão inseridos nos livros “Contrastes e Con­frontos”, de 1907, e na primeira parte de “À Margem da História”, de 1909, além do prefácio de “Inferno Verde”, de Alberto Rangel, incluído nos conjuntos “Outros Contrastes e Confrontos”, e “Fronteira Sul do Amazonas” incluído no conjunto “À Margem da Geografia”.

   Foi o primeiro entre todos de um lado, a retratar e revelar, dramaticamente, aquele “paraíso perdido”, de outro despertar, em textos reivindicantes, vingadores, o conhecimento e a discussão dos gritantes problemas que afligiam (afligem) a região — segundo ele um outro Brasil, aliás, um novo Brasil no qual, contrariando a si mesmo no conceito original esboçado no estudo dos sertões, a presença do homem e sua relação com o meio era afirmada pela mestiçagem étnica, o mestiço amazônico não mais visto como desenhara o sertanejo nordestino, biologicamente incapaz, assim tido antes de Canudos, descrito no “Diário de Uma Expedição”, não aquele sertanejo depois apresentado e exposto em “Os Sertões”, um “homem grandioso, ser autêntico, rocha viva da nacionalidade”: o Euclides da Amazônia contraposto ao Euclides dos sertões. Suas conclusões de ordem sociológica e antropológica são consideradas revolucionárias para a época, e ex­tra­ordinariamenteabsolutamente atuais com relação à Amazônia — onde, a rigor, se deu outro processo revisionista de Euclides: assim como pós-Canudos, o pós-Amazônia provoca reformulação de alguns valores sociais, vis a vis com um alargamento de suas proposições de integração nacional e constituição de uma civilização brasileira. “Um paraíso perdido”, projeto do texto impossibilitado por sua morte, oferece a hipótese da ratifica­ção de conceitos anteriores e a retificação cabal de muitos novos conceitos.

    Na Amazônia euclidiana também a terra e o homem integrados numa equação de ordem sociológica e antropológica — uma convergência de decorrências e interações dentro dos estudos euclidianos — pela qual a ocupação e o povoamento se dariam preponderantemente pela chegada dos nordestinos expulsos pela seca. Da mesma forma sob o escopo de seu projeto de integração nacional, a Amazônia com a exuberância de seus espaços e riquezas naturais ainda inexploradas, seria o destino inevitável dos contingentes saídos de outras regiões por adversidades climáticas, geológicas, geográficas e especialmente sociais e econômicas, constituindo-se na “mais dilatada diretriz de expansão de nosso território”, para seus olhos embevecidos o “deslumbrante palco onde mais cedo ou mais tarde se há de concentrar a civilização do globo” — daí vindo a ser um dia objeto de cobiça estrangeira, vítima do expansionismo e ambições territoriais das potências mundiais (“a expansão imperialista das grandes potências é um fato de crescimento... e a conquista dos povos é uma simples variante da conquista de mercados”), o que exigia, sustentava Euclides, imediata e eficaz ação por parte das autoridades e do poder público para completa defesa e integração da Amazônia, inclusive tornando viável, mercê de obras técnicas, a navegação dos afluentes do rio Amazonas ligando-os ao Purus e o Madeira e a região de exploração da seringueira e do caucho.

   Em suma, atestado da atualidade de muitas de suas reflexões, prevendo o debate que iria surgir no mundo mais tarde, pleiteava uma civilização brasileira que confrontasse os interesses globais, pois temia que “a Amazônia, mais cedo ou mais tarde se destacará do Brasil, como se destaca um mundo de uma nebulosa”.

   Na Amazônia, por Euclides, a ecopolítica recebe novas lentes: o olhar euclidiano sobre a região e seu destino no Brasil e no mundo envereda e lança as primeiras luzes para a geopolítica, rigorosamente nos moldes, diga-se, dos mais atuais e importantes debates. 

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