segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Homenagem a Daniel Piza, por Ana Maria Machado


       Confira o texto que a escritora Ana Maria Machado dedicou ao jornalista Daniel Piza, que refez a viagem de Euclides ao Alto Purus, na Amazônia, dando origem ao documentário "A Amazônia de Euclides: um paraíso perdido."

Homenagem a Daniel Piza, por Ana Maria Machado

       Desde que o Daniel morreu eu estava querendo homenageá-lo de alguma forma. Não sabia como.  Não conheço sua família, não tinha muito contato com ele, não sabia a quem me dirigir. Mandei apenas um telegrama ao jornal, falando da minha tristeza. Agora aproveito a oportunidade  para deixar registrado quanto eu o admirava. E quanto gostava dele.

       Conhecemo-nos em Cambridge, na Inglaterra, no verão europeu de 1996, onde por duas semanas intensas  participamos de um seminário de literatura. Ouvimos ótimas palestras, debatendo com gente como Doris Lessing,  A.S. Byatt,  P. D. James, Terry Eagleton, Margaret Drabble, Malcolm Bradbury, Michael Holroyd. E, sobretudo, tivemos o privilégio de passar um dia inteiro podendo conversar e beber as palavras de um intelectual de nossa especial admiração, George Steiner. Conversas numa sala, esparramados em poltronas, e em seguida nos pubs e nos jardins dos colleges, entre  horas de explorações em livrarias. Os escritores brasileiros éramos Eric Nepomuceno, João Silvério Trevisan, Cristóvão Tezza e eu, que lemos trechos de nossas obras , debatidas pelos outros participantes. E no meio de tanta gente inteligente e instigante, uma das impressões mais fortes que me ficou foi a do contato com o fulgor da mente de Daniel Piza. Descobrimos afinidades, manifestamos afeto. Mas convivemos pouco. Nem ele vinha muito ao Rio, nem vou com frequencia a SP.

       Encontrá- lo foi uma alegria. Não apenas pelo prazer pessoal, mas pela confirmação de minha crença teimosa de que existe vida inteligente no jornalismo cultural brasileiro e, com frequência, ela está em artigos e colunas, onde o autor pode se expor sem precisar se amparar nas opiniões alheias das entrevistas.

       Às vezes nos telefonávamos.  Volta e meia comentávamos os escritos um do outro. Um dia, ele me surpreendeu publicando um belo livro infantil, MUNDOIS. Coisa que quase todo mundo tenta e pouquíssimos conseguem.  Pois Daniel conseguiu. Profundo e claro.  Como a lua do poema de Fernando Pessoa, grande e inteira, mesmo restrita nos limites mais apertados,  porque alta brilha. Liguei para ele, encantada. Conversamos sobre isso, sobre direita e esquerda, sobre patrulhas ideológicas, sobre correções políticas, sobre a coragem moral de ser fiel a si mesmo e não se deixar apenas levar pela correnteza. Para mim, o jornalismo cultural que ele fazia era uma comprovação disso. Além de ser capaz de dialogar com outras leituras e estar muito ligado ao quotidiano, trazia a marca que me parece importantíssima no setor : a capacidade de afirmar que as coisas  não são bem assim como todo mundo está repetindo sem pensar. Que existe um “por outro lado”. De pressupor uma dúvida, um matiz diverso.  De não se cansar de reler, uma das marcas da civilização, como  ele fazia questão de dizer.
Daí que uma homenagem que desejo propor é que Daniel Piza seja relido. Os artigos  reunidos num livro como Questão de Gosto, por exemplo, estão sempre a nos trazer algo novo. Transcendem o tempo de duração do jornalismo – efêmero por definição. Participam cada vez mais do cultural. Assim,  conseguem permanecer.

      Pena que Daniel permaneceu tão pouco entre nós. Faz falta. Sua morte prematura não dá só tristeza. Dá raiva.

(Do site da Biblioteca Municipal Popular de Botafogo-RJ)

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