Trágica ingenuidade
Uma das características de certa intelligentsia brasileira é nunca apontar erros alheios. E, raramente, discordar em público. Na área das ciências humanas, quando um estudioso descobre erros factuais na obra de outrem, quase sempre utiliza o recurso retórico de, apenas tangenciando a falha do colega, sem citar seu nome, revelar a informação correta. Para os otimistas, essas referências imprecisas são exemplos da nossa ética e devem ser inseridas no rol das cordialidades tupiniquins. Mas prefiro entendê-las como uma espécie de tabu, justificado por certo acanhamento macunaímico que empobrece a vida cultural do país e impede o exercício da polêmica.
Os leitores, contudo, não encontrarão esse tipo de pusilanimidade em Euclides da Cunha: uma Odisseia nos Trópicos, do norte-americano Frederic Amory, que foi professor de literatura medieval na Universidade de São Francisco (EUA) por mais de vinte anos e se dedicou, a partir de 1960, a estudar a vida e a obra do autor de Os Sertões. Amory, infelizmente falecido em 2009, pôde desenvolver suas pesquisas, e publicá-las, livre das injunções típicas de algumas de nossas igrejinhas. Assim, ele não teme rebater pontos de vista dos biógrafos de Euclides – Eloy Pontes, Sylvio Rabello e Olímpio de Sousa Andrade –, discorda, de maneira pontual, de Walnice Nogueira Galvão, Nicolau Sevcenko, Leandro Tocantins e Roberto Ventura, e critica este ou aquele tópico em Adelino Brandão, Joaquim Pinto Nazário e Clóvis Moura. Trata-se de um livro caracterizado pelo destemor e pela altivez de quem consagrou sua vida a determinado objeto de estudo – obra que nasce clássica, e que não por outro motivo recebeu o Prêmio Euclides da Cunha da Academia Brasileira de Letras, depois de concorrer com outros 29 livros.
Detalhista, o biógrafo aponta problemas, inclusive, na Obra completa de Euclides da Cunha, cujos editores corrigiram “de maneira constrangedora” a tradução “ligeiramente errada” que o escritor fez de uma frase do naturalista Alfred Russell Wallace. (Observe-se, no entanto, que o pesquisador não teve tempo de consultar a última edição, de 2009.) Em seu exaustivo trabalho, Amory estudou a melhor bibliografia do período republicano brasileiro – tendo o mérito, dentre outros, de recuperar um dos seus mais valiosos pesquisadores, José Maria Bello, lido atualmente apenas nos raros círculos que não se encontram sob influência marxista – e se debruçou sobre as principais fontes de Euclides, chegando a extremos de minudência, como o de localizar na obra de Domingo Sarmiento as citações que nosso escritor transcreve sem mencionar o livro utilizado. Em seu afã, não desprezou nem mesmo a produção literária e ensaística dos cadetes contemporâneos de Euclides na Escola Militar.
Racismo e determinismo
Outra das qualidades de Amory é não escamotear nenhum dos aspectos censuráveis da obra euclidiana. O racismo, inserido no quadro da evolução intelectual de Euclides, que vai do positivismo ao darwinismo spenceriano, ganha inúmeras páginas de análise e uma conclusão que poucos tiveram coragem de escrever: se o escritor não foi um “rematado racista”, suas ideias “sobre a sociedade e o avanço ou regressão social” são “tingidas ora com matizes mais leves, ora com matizes mais escuros de racismo”. É o caso, por exemplo, do insistente e obscuro bordão da “integridade étnica” que faltaria aos brasileiros, capaz de nos aparelhar “de resistência diante dos caracteres de outros povos” – uma tese tão simplista quanto ultrapassada.
Há também o exagerado determinismo, que permitiu a Euclides criar um método recorrente – inspirado em Henry Thomas Buckle – para expressar suas analogias: o que Amory chama de “interações fantasiosas entre o homem e a natureza”. Vistas sob certa perspectiva unilateral, podem parecer licenças poéticas, mas quando contextualizadas no plano maior do pensamento euclidiano, tornam-se hipóteses pseudocientíficas. No ensaio “Contrastes e confrontos”, por exemplo, a ideia é de que, no Peru, “a história parece um escandaloso plágio da natureza física”. Euclides faz, então, o Império Inca ser resultado da presença dos Andes, enquanto o comportamento dos modernos líderes políticos daquele país seria fruto dos terremotos... No que se refere aos caboclos da Amazônia, o escritor avalia que a própria floresta se encarrega de selecionar para a vida os mais dignos: “Eliminou e elimina os incapazes, pela fuga e pela morte. E é por certo um clima admirável que prepara as paragens novas para os fortes, para os perseverantes e para os bons”. Sem dúvida, conclusões que, analisadas sob critérios científicos contemporâneos, não passam de bobagens. Tais raciocínios, inclusive, estimulam uma visão exageradamente otimista, quase pueril, segundo a qual o progresso produzirá um inevitável desenvolvimento das qualidades morais, de modo a tornar “a sociedade uma extensão da unidade familiar”.
Frederic Amory não perdoa nem mesmo as generalizações de seu biografado, algumas bem toscas, como a afirmação de que “a literatura russa divulgou um largo e generoso sentimento de piedade, diante do qual se eclipsam, ou se anulam, o platônico humanitarismo francês e a artística e seca filantropia britânica”.
Escrúpulos e imaturidade
Quando se trata de política, o biógrafo demonstra a completa ingenuidade de Euclides. Sonhador, ele realmente acreditava que a República não nascera de uma quartelada, mas, sim, de um processo revolucionário. E tal idealismo turvaria seus pensamentos, fazendo com que, em minha opinião, os problemas encontrados por Amory nos primeiros artigos, escritos para A Província de São Paulo – “o brilhantismo intelectual de suas apresentações podia ser tão artificial quanto sua ignorância de que a política de bastidores realmente existia, e as pessoas e os fatos frequentemente desapareciam diante das abstrações de sua argumentação” –, se repetissem, em maior ou menor grau, até a derradeira página.
A incapacidade de Euclides para compreender os mecanismos da luta política e seus inseparáveis lances de perfídia levou-o a acreditar em Floriano Peixoto, ainda que, mais tarde, percebesse algumas sutilezas do ditador. Esse erro, somado ao seu incurável romantismo, faz com que apoie a ditadura florianista e, depois, não dedique atenção a Prudente de Morais, talvez o principal político da República Velha, cujas qualidades José Maria Bello enumerou em História da República: “O melhor tipo de político criado pelo Império de Pedro II: inteligência equilibrada, probidade perfeita, gravidade um tanto formalística, altivez, espírito cívico, invencível aversão a qualquer forma de militarismo”.
Essa imaturidade desbordaria para a vida profissional e familiar. O episódio envolvendo a Escola Politécnica de São Paulo e seu diretor, Paula Souza, é tristemente paradigmático. Depois de escrever severas críticas à escola e à orientação de Paula Souza, Euclides luta para conseguir uma cadeira na Politécnica. E se surpreende por não consegui-la, julgando, talvez, que devessem desconsiderar os ataques públicos que fizera e aceitá-lo por seus méritos... Sem dúvida, ele era de uma inabilidade social lamentável.
Às vezes, essa incompetência para a vida prática provocava cenas dignas: Euclides chega a se altercar com o barão de Rio Branco por causa do valor de seu salário, pois continuava a receber como chefe da Comissão Mista que explorara o rio Purus, apesar de a expedição ter acabado – devendo, portanto, segundo ele, receber de acordo com a “tabela comum”. Após muita discussão, acaba convencido pelo barão de que o salário estava certo, já que ainda não terminara de redigir o relatório final.
Em outros momentos, no entanto, sua imaturidade e seus exagerados escrúpulos morais o transformam num tolo. É desolador acompanhar o relato de como ele foi jubilosamente traído pela esposa, Ana. Depois de longos meses na Amazônia, quando volta ao Rio de Janeiro encontra Ana grávida de três meses – e esta lhe diz que fora infiel apenas “em espírito”... E até mesmo quando o filho do adultério nasce, louro, semelhante a “um pé de milho num cafezal”, segundo o que Euclides teria dito a Coelho Neto, o escritor parece perdido em dúvidas, sentindo-se culpado pela longa ausência a serviço do país.
Obra monumental
Não deixa de ser espantoso que tal personalidade tenha escrito Os Sertões. E é ainda mais surpreendente que o tenha feito não no silêncio do escritório, mas em uma cabana de folhas de zinco, em pleno canteiro de obras, enquanto dirigia a reconstrução da ponte sobre o rio Pardo, em São Paulo.
Amory faz a reconstituição minuciosa do período que Euclides passou em Canudos – acompanhando a última expedição do governo, que derrotaria as forças de Antônio Conselheiro –, recupera detalhes da guerra, interpreta trechos vagos das anotações do escritor, confere o acerto de cada uma das datas e nos apresenta o processo de criação de Os Sertões, a começar dos primeiros esboços, de 1898.
A obra monumental de Euclides da Cunha tem provocado reações contraditórias desde o seu lançamento, em 1902. E, numa tentativa de isolar o valor estilístico dos erros geográficos e das análises deterministas e racistas, convencionou-se dizer que a força da narrativa de Os Sertões supera o conteúdo analítico datado. Amory tenta seguir essa linha de pensamento, e o faz bem, inserindo o estilo euclidiano na categoria de Kunstprosa, que se refere a uma prosa altamente artística e formal, construída com o apoio do aparato retórico clássico. Não por outro motivo, aliás, o biógrafo também se serve, em sua análise, do livro de Heinrich Lausberg, Elementos de retórica literária.
Confesso que já admirei mais o estilo euclidiano. Hoje, pinço os trechos que ainda me encantam e, no geral, tendo a pensar como Gilberto Freyre, para quem Euclides está “perigosamente próximo do precioso, do pedante, do bombástico, do oratório, do retórico, do gongórico, sem afundar-se em nenhum desses perigos: deixando-o apenas tocar por eles; roçando por vezes pelos seus excessos; salvando-se como um bailarino perito em saltos-mortais, de extremos de má eloquência que o teriam levado à desgraça literária ou ao fracasso artístico”.
Dentre os trechos selecionados por Amory há um dos que mais aprecio, “Higrômetros singulares”, o qual considero – como afirmei neste blog, em post de 26 de abril de 2009 – inspirado no poema “Le dormeur du val” (“O adormecido do vale”), de Arthur Rimbaud. Os comentários do biógrafo, aliás, só reforçaram minhas suspeitas: se Euclides leu Maurice Rollinat, por que não conheceria Rimbaud?
Tendência ao trágico
Mas, voltando ao objeto desta resenha, Amory nos deixou um trabalho de rara honestidade intelectual, que supera, sem qualquer dúvida, as biografias anteriores, pois nenhuma delas apresenta, de maneira tão viva, esse “homem multifário”. Todas as neuroses dessa personalidade doentia, irritativa, são apresentadas, bem como as dificuldades em família, as tortuosas relações com o pai, os gestos de heroísmo na expedição ao rio Purus, a revolta diante dos crimes de Canudos, a sexualidade sublimada na juventude – e a incontrolável tendência ao trágico, seu anelo da morte trágica, visível, por exemplo, na atitude que teve durante uma tempestade em alto-mar, quando exige que a embarcação não se desvie do rumo, e mais tarde, salvo em terra graças ao capitão que o desobedecera, no comentário que faz a Vicente de Carvalho, seu companheiro de viagem: “Se eu morresse seria uma bela morte – uma morte no cumprimento do dever. A sua é que seria estúpida – morrer num passeio”. Tragédia que ele finalmente encontraria, assassinado pelas costas e ouvindo, em seu último momento, não as palavras de carinho maternal que, órfão desde pequeno, certamente buscou por toda a vida, mas a invectiva do amante de sua mulher: “– Toma, cachorro!”.